domingo, 24 de março de 2013

TRISTEZA, VAZIO EXISTENCIAL E ESTRATÉGIAS DE SUPERAÇÃO


Casa de Pedra - VLL


Vinícius Lousada[1]


“Sabeis por que, às vezes, uma vaga tristeza se apodera dos vossos corações e vos leva a considerar amarga a vida?”[2]



A melancolia segundo os Espíritos

                A mim muito impressiona, cada vez que releio uma página, a atualidade das obras fundamentais do Espiritismo. São atuais quanto ao seu conteúdo porque a leitura pode revelar conceitos de uma profundidade filosófica e psicológica que vão ao encontro dos conflitos existenciais de nossos dias, apesar de transcorrido tanto tempo de sua publicação.
                Um exemplo do que me refiro acima está na mensagem “A melancolia”, publicada por Allan Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo, no item 25 de seu capítulo quinto. Nessa obra em que o mestre se dedica a apresentar um estudo do Evangelho de Jesus numa leitura mais espiritual do que as religiões tradicionais vinham apresentando, notadamente com a chave do ensino dos Espíritos Superiores, destaca-se essa página psicológica a respeito da qual me proponho meditar aqui.
                O Espírito François de Genéve, em uma página ditada provavelmente em um grupo espírita bordelense, se dedica a caracterizar a melancolia delineando as marcas que deixa na alma, sua causa espiritual e apresenta também estratégias de superação desse sentimento, concitando o seu portador ao uso enérgico da vontade para escapar do estado de prostração que a melancolia deixa naquele que a cultiva.
                Em síntese, o autor espiritual caracteriza a melancolia como um sentimento de tristeza que se apodera do coração levando o indivíduo a identificar a vida com amargor. Em se demorando nessa postura sombria, pode-se cair na apatia, lassidão e profundo abatimento sob o domínio da alma triste. Nessa condição, julgamo-nos por demais infelizes.
                Contudo, o Espírito, autor do texto, não deixa de considerar que a aspiração por liberdade é comum no Espírito reencarnado. As condições existenciais concretas em que vivemos nos fazem desejar, inconscientemente, o gozo da liberdade espiritual – experimentada muitas vezes nas atividades de emancipação da alma –, na ânsia de afastarmo-nos dos problemas que enfrentamos, nada obstante, o fato de que estes não passem de provas e expiações no roteiro do nosso progresso espiritual, como depreendemos na Filosofia Espírita.
As provas consistem nas lutas enfrentadas na vida corporal que são necessárias ao desenvolvimento do Espírito em inteligência e moralidade. Por sua vez, as expiações consistem em experiências mais exigentes nascidas em atitudes tomadas em desacordo com as Divinas Leis. Desse modo, diante da “opressão” dos desafios da vida corpórea nos sentimos abafados em nossas possibilidades e a realidade extrafísica pode parecer mais atrativa por força do que a respeito dela trazemos nos arcanos do inconsciente.
Certamente que uma demorada reflexão acerca de si mesmo permite ao indivíduo perceber que a grande gênese de seus conflitos está no seu planeta interno e ele os conduz em qualquer dimensão da vida, a morte não elimina as dores da alma. Allan Kardec, como pioneiro dos estudos psicológicos a luz da Ciência Espírita pôde registrar, conforme encontramos na obra O Céu e o Inferno, que cada qual vive o estado de felicidade íntima na vida espiritual conforme esse já se apresentava porque ninguém sofre mágica transformação com o fenômeno da desencarnação.
Aliás, ensinam os Espíritos co-autores de O Livro dos Espíritos que “O homem é quase sempre o obreiro da sua própria infelicidade. Praticando a lei de Deus, a muitos males se forrará e proporcionará a si mesmo felicidade tão grande quanto o comporte a sua existência grosseira.”[3] Todavia, deve ficar evidente que precisamos verificar o nível de tristeza que nos invade, se está relacionada com o constrangimento que o corpo estabelece ao Espírito ou se estamos experimentando um sentimento oriundo de dores morais edificadas por nós, cabendo-nos o trabalho pessoal de superação dessa mazela.
A vontade de liberdade da alma não deve significar desejo de morte, muito pelo contrário, deveria se instituir em um impulso para instigar o ser na busca de saberes, ações e aspirações elevadas em sintonia com o desenvolvimento dos seus próprios potenciais, mobilizando-o ao crescimento e felicidade possível na Terra. Por outro lado, o desejo funesto de morte revela um aprofundamento da tristeza que se configura na patologia identificada como depressão, bem catalogada na medicina cujos recursos terapêuticos o indivíduo, com o apoio de seus familiares, deve buscar.
A depressão, como vemos em interessante artigo da terapeuta transpessoal Iris Sinoti[4], é diferenciada da tristeza normal e pode ser compreendida como um distúrbio de humor que desequilibra o universo emocional da pessoa. Consiste em uma experiência subjetiva muito dolorosa, produtora de um sentimento profundo de perda que degrada a psique do indivíduo. Os processos depressivos estão marcados pela ausência de sentido existencial e alteram o modo com que a pessoa lida com a sua subjetividade e com o mundo. Também, a depressão pode ser encarada como um alerta da alma a fim de endereçar o enfermo para a busca de sentido, o conhecimento de si mesmo e o cultivo do autoamor, estratégias psicológicas necessárias para o encontro saudável consigo mesmo.

 Allan Kardec


O vazio existencial e a ausência de sentido

                No século passado, ao se dedicar a entender a solidão e a ansiedade do homem moderno, o psicólogo americano Rollo May (2011) apontou o vazio existencial como um dos problemas fundamentais da época. Ao se referir à “gente vazia”, ele se ocupa de reflexionar sobre as razões psicossociais desse fenômeno em uma sociedade como a nossa, infelizmente pautada em valores consumistas, onde muitas pessoas são assoladas por aqueles conflitos em razão do descuido para com a própria subjetividade. “O vácuo interior é o resultado acumulado, a longo prazo, da convicção pessoal de ser incapaz de agir como uma entidade, dirigir a própria vida, modificar a atitude das pessoas em relação a si mesmo, ou exercer influência sobre o mundo que nos rodeia”[5] Destaca, ainda com muita propriedade, firmada no cotidiano de sua práxis, que as pessoas que sofrem desse vazio não somente ignoram o que querem, como também, o que sentem. O que equivale a dizer que os vitimados pelo vazio existencial em nossa sociedade desconhecem a si mesmos, experimentando, por consequência, uma vida sem sentido forjada na direção imposta pela coletividade. Para tanto, o grupo social estabelece valores erigidos como metas a serem perseguidas inquestionavelmente que, por sua vez, funcionam como reguladores da vida e do valor do indivíduo, mesmo que as suas consequências éticas sejam pouco lúcidas ante o exame do bom senso.

Rollo May              

         Sobre esse fenômeno psicológico do vazio existencial, é bom ter em conta que, ao desconhecer-se, o indivíduo adere aos valores e normas sociais de um modo que a contrapartida inevitável é a desagregação da própria identidade ante as determinações da “ditadura” das vontades externas à sua. Nesse contexto, a falta de autonomia conduz o indivíduo à necessidade de adaptar-se mais do que autorealizar-se, prática que recalca a criatividade e as potencialidades do ser. A pessoa simplesmente se ajusta de forma pouco reflexiva e nada criativa à sociedade enferma, perde a referência de quem é e passa agir de forma normótica[6], passando viver a patologia normalidade do grupo social.
Um caminho de superação da desidentificação com o self[7] está assinalado em O Livro dos Espíritos, na questão[8] em que os Benfeitores da Humanidade nos convocam, conforme o registro do mestre Allan Kardec, ao conhecimento de nós mesmos mediante a problematização diária de nossa conduta e suas razões. Trata-se de uma viagem necessária à saúde mental tanto quanto ao nosso progresso espiritual. Suponho que o conhecimento de si mesmo consiste em conquista que permite ao Espírito atribuir sentido à atual reencarnação, colocando-a em um nível de vivência autoeducativa e, por esse entendimento, de significado profundo e transcendente. Todavia, o sentido existencial referido aqui deve ser atribuído pelo indivíduo em um exercício permanente de autoconhecimento – não por outrem –, nada obstante a consciência esteja repleta de significados construídos culturamente na vida atual e em outras.
                Ao desenvolver a Logoterapia a partir de suas vivências de prisioneiro em um campo de concentração nazista, Victor E. Frankl[9] também identificou o vazio existencial como um fenômeno do século XX, aliás, que se alonga até o nosso. Segundo esse psiquiatra austríaco, entre as do vazio existencial estariam a perda de alguns dos instintos básicos de nossa ancestralidade ao longo da evolução da espécie humana e, mais recentemente, a redução da importância das tradições como suporte para a definição das escolhas dos indivíduos. Nesse caso específico, vivemos dias de uma pós-modernidade que questiona as grandes narrativas, as formas fechadas de explicação do mundo e nos incita à autonomia intelectual, muito embora, muita gente se entregue ao entorpecimento da consciência ou ao niilismo nesse contexto desafiante à racionalidade que se dobra sobre si mesma cobrando uma reforma de pensamento ou mudança de paradigma em nível pessoal e coletivo.

Victor Frankl

                Para Frankl, o vazio existencial costuma se apresentar no tédio que algumas pessoas sentem, quando identificam a falta de conteúdo de suas vidas a partir de momentos de quebra de rotina que acabam, de algum modo, por ensejar que reflitam a respeito. O vazio existencial, nessa linha de raciocínio, também está na base da depressão. Há casos em que o indivíduo procura compensar a vontade de sentido frustrada no poder ou no prazer e, naturalmente, na ausência desses uma crise se instala convocando-o a repensar a existência e pode facilitar a busca por terapia especializada. Aí estaria uma contribuição da Logoterapia: convidar o indivíduo a ser responsável pela sua vida, dito de outra forma, a ser sujeito da própria história.



Estratégias para a superação da tristeza

Pôr-do-sol no Cassino - VLL


                Algumas estratégias para que a alma supere a tristeza comum, a partir da reflexão proposta pelo Espírito François de Genéve, podem ser resumidas da seguinte forma: a) resistência enérgica às impressões que nos enfraquecem a vontade; b) considerando os ensinamentos dos Espíritos Superiores registrados por Kardec, aguardar com paciência o retorno para a vida espiritual que um dia virá, inevitavelmente; c) ter em vista a nossa missão na presente reencarnação, seja na família ou cumprindo as diversas obrigações que Deus nos confiou; d) Força, coragem para suportar àquelas impressões, encarando-as com determinação. Frente ao exposto, façamos uma breve meditação em torno dessas recomendações logo abaixo:
                Quando a tristeza comum ou melancolia se achegar podemos tentar resistir, como propõe o benfeitor espiritual, com energia, ou seja, com uma disposição da alma de não se entregar a esse quadro emocional até porque temos razões de compreender, a luz do pensamento espírita, o significado do momento presente como aprendizagem para o ser imortal que somos. A vontade, que é uma das potencias da alma, deve estar fortalecida pela energia que empreendemos em seu favor para que, com objetivo esclarecido, modifiquemos a paisagem que se delineia em nós mesmos. Aqui um recurso útil seria a prática da meditação[10].
                Ao considerar a brevidade da reencarnação e a certeza de nossa ancianidade e imortalidade, as agruras dessa vida são quase um nada porque observadas de um ponto de vista mais amplo podem ser compreendidas como acidentes de percurso que carregam consigo lições ao aprendiz atento que procura aproveitar de cada experiência aquilo que pode lhe enriquecer a alma. Esses saberes, quando devidamente apropriados, promovem a paciência que, a seu modo, conduz paulatinamente à paz interior. E é de gente apaziguada com força interior suficiente para pacificar que o nosso mundo precisa.
Ainda cabe considerar que, nessa reencarnação, temos uma variedade de deveres para conosco e para com o próximo a começar pelo nosso lar e extensivo à sociedade. Tenhamos em mente, quando a tristeza quiser se aprofundar e inspirar patologicamente algum desejo de morte, que Deus concede “A cada um a sua missão, a cada um o seu trabalho.”[11] Assim sendo, conhecendo-nos traçamos objetivos em sintonia com o que somos e a forma pela qual podemos contribuir com o progresso coletivo, fazendo-nos agentes transformadores da realidade a começar pelo nosso mundo íntimo.
Por fim, ante as investidas sombrias do pessimismo e da tristeza recordemo-nos da lição do farol, ainda que as noites sejam de tormenta, mantém-se impoluto diante da violência das vagas suportando-as sem tombar e iluminando a jornada dos que prosseguem no mar. O farol assinala um porto-seguro. A pessoa que procura lidar com a tristeza sem deixar dominar-se demoradamente por ela – senti-la é normal e saudável – pode acender luz nesses dias de transição e ausência aparente de referenciais apaziguadores. Ela pode iluminar caminhos, sem que tenha essa pretensão, pela luz que acende em sua alma projetando-se corajosamente em um processo de evolução consciente nas lutas da vida.

           




[1] Educador, pesquisador e editor do blog SABERES DO ESPÍRITO.
[2] O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. V, item 25.
[3] O Livro dos Espíritos, questão 921.
[4] SINOTI, Iris. Depressão: uma luz na escuridão. In: Núcleo de Estudos Psicológicos Joanna de Ângelis. Refletindo a alma: a psicologia espírita de Joanna de Ângelis. Salvador, BA: Livraria Espírita Alvorada Editora, 2011, p. 291-317.
[5] MAY, Rollo. O homem a procura de si mesmo. 36. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 23.
[6] Sobre esse tema vide o meu artigo “Apreciações sobre a normose” em: http://saberesdoespirito.blogspot.com.br/2010/03/apreciacoes-sobre-normose.html.
[7] O Self deve ser compreendido como um arquétipo do potencial humano em sua plenitude e tem a função de ordenar a vida psicológica do indivíduo. Roberto (2004, p. 52) assim o define: “sentido orientador fundamental, fonte criadora e reguladora de nossa vida psíquica, centro ordenador e unificador da psique. (Vide: ROBERTO, Gelson Luis. Aquém e além do tempo: uma visão psicológica e espírita das etapas da vida. Editora Letras de Luz, 2004.)  
[8] O Livro dos Espíritos, questão 919.
[9] FRANKL, Viktor E.. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 25. Ed. São Leopoldo: Sinodal, Petrópolis: Vozes, 2008, p. 131-134.
[10] Caso o leitor queira refletir um pouco mais sobre o tema da meditação, numa perspectiva espírita, sugiro o texto “Medite sempre”, acessível em: http://saberesdoespirito.blogspot.com.br/2012/02/medite-sempre.html  
[11] O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. I, item 10.