domingo, 16 de março de 2014

Lidando com a cólera



“(...) a cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede se faça muito bem e pode levar à prática de muito mal. Isto deve bastar para induzir o homem a esforçar-se pela dominar. (...)” ¹

Vinícius Lousada – vlousada@hotmail.com


Por que sentimos raiva? Qual a natureza ou origem da cólera em nossa intimidade? Qual o motivo de assumirmos posturas explosivas perante as pessoas ou circunstâncias? E como podemos lidar com isso?

Essas são perguntas que deveríamos nos fazer quando identificamos no rol de nossos hábitos a repetição de atitudes encolerizadas, em que, agressivos, despejamos a raiva nos outros, encharcando-nos, por sua vez, de fluidos venenosos.
Como seres imortais, sedimentamos no psiquismo, ao longo das vidas sucessivas, uma série de conteúdos psicológicos, saberes, crenças e posturas. Conectados a uma complexa rede de relações sociais em nossos encontros com o mundo e seus desafios quotidianos desenvolvemos nossas aquisições intelectuais e morais.
A agressividade que portamos há muito, desde quando o princípio espiritual transitava na esfera do reino animal, vem sendo lapidada pouco a pouco no confronto com outros conteúdos que passaram a ser apreendidos, seja na convivência que os laços de afeto facultaram, seja no desabrochar dos raciocínios fomentados pelos empreendimentos que somos levados a engendrar com vista ao atendimento das necessidades básicas de sobrevivência.
Mas, ainda assim, trazemos uma parcela de agressividade no íntimo que se expressa pela raiva. É importante, nesse caso, que aprendamos a lidar com esse sentimento a fim de que possamos superá-lo, num processo auto-educativo, evitando acostumarmo-nos a ceder à animalidade que trazemos, como acontecem nesses acessos de raiva em que, verdadeiramente, nos bestializamos.
A percepção correta da raiva é um procedimento indispensável no caminho daquele que busca educar-se e conquistar a paz interior. “O exame profundo é o remédio mais recomendável para a raiva (...)” ². Aliás, somente podemos moldá-la convenientemente na medida em que a reconhecemos e nos ocupamos de tratá-la.
Avaliando que não estamos prontos, que somos Espíritos cuja “incompletude” é qualidade imanente à nossa vocação de ser mais, uma análise cuidadosa das nascentes de nossas emoções ajudaria muito a identificarmos o quanto de raiva ainda somos portadores.
Percebendo a sua presença, seria interessante que nos olhássemos no espelho, que enxergássemos nossa fisionomia retratada no reflexo revelado, denotando o estado de inferno pessoal em que ficamos quando a cólera está no comando.
Considerando que ela não resolve nossos problemas, ao contrário, só gera mais sofrimento, piora tudo e que também põe em risco a saúde corporal, o seu reconhecimento pode instigar forçosamente o inteligente desejo de supera-la.
É obvio que, geralmente, utilizamo-nos de mecanismos de defesa negando essa enfermidade da alma, apontando como sua causa a herança genética, ou supostos processos educativos castradores em que teríamos aprendido a violência como única linguagem possível. Porém, essencialmente não somos violentos, a violência é um estado transitório a que aderimos por decisão própria porque, como atesta o Espírito Hahnehann, todas “(...) as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito. (...)” ³.
Mais uma razão para o desejo de superação consciente da cólera: ela está enraizada em nossas imperfeições morais e, ao trabalhá-la, estamos vencendo concomitantemente o homem velho, com vistas à felicidade que galgaremos nesse aprendizado de transcendência. E o vício moral que ativa a cólera – esse estado de temporária bestialização – é justamente o orgulho ferido, expresso no mais singelo laivo de personalismo, na irritabilidade constante, no desejo de dominação e materializado nos impulsos agressivos para com o semelhante ou na direção das coisas ao redor.

Trabalhando a raiva, moldamos o nosso orgulho. Envolvendo-a em energia serena, que edifica sempre, na construção de sentimentos purificadores 4, iluminamo-nos e avançamos em espiritualidade.
Assim sendo, para tecermos um estado de alma pacificada, procedamos ao reconhecimento da cólera, admitindo-a para a seguir, contê-la com a calma, sem estruturar uma guerra íntima, mas um esforço contínuo de reformulação moral, orientando-nos com os saberes espíritas e agindo diariamente alicerçados no amor preconizado por Jesus Cristo.
Dentre as estratégias que se pode utilizar para esse objetivo, uma ferramenta útil consistiria na tentativa de treinarmos a nossa capacidade de sorrir, e, por conseqüência, de relaxarmos a face. Sorrir aliviando as tensões, rindo saudavelmente de nossas dificuldades, procurando desenvolver o bom humor e uma disposição pessoal para a felicidade.
Desse modo irradiaremos simpatia e nos condicionaremos a conter a cólera através da transformação do hábito da fúria pela prática meditação consciente.
Respirar e orar para pensar antes de falar ou reagir, consumindo a raiva como se fosse um combustível a ser desgastado pelo amor, também é um recurso extraordinário a ser tentado nesse tentame renovador.

Cada um de nós, por amor ao próximo e a si mesmo deve empenhar a sua criatividade para aprender maneiras de lidar com a cólera, superando a postura reativa das manifestações modernas do famigerado duelo e da vingança, presentes nas condutas atormentadas de nossa sociedade, tão carente de Jesus e da compreensão de onde se encontram seus verdadeiros interesses.

1- O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IX item 9.
2- NHÃT HANH, Tich. Aprendendo a lidar com a raiva. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 84.
3- O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IX item 10.
4- XAVIER, Francisco C. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 22. Ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2000, p. 110.


Texto extraído da Revista Internacional de Espiritismo – Ano LXXX – Nr. 10 – Novembro de 2005, págs. 518 e 519.