Na Lagoa - VLL (2014)
Vinicius Lousada[1]
“(...) através da
nuvem sombria que vos envolve e em cujo seio ruge a tempestade, observai que já
surgem os primeiros raios da era nova!”[2]
Os últimos acontecimentos envolvendo
atos de terrorismo na França, berço do pensamento iluminista e dos direitos do
homem e do cidadão, nos colocam a pensar, mais uma vez, em torno do tema da
paz.
A paz é coisa séria, necessária ao
processo civilizatório e que demanda articulação entre a diversidade de
crenças, atitudes, etnias, culturas para que, em regime de convivência pacífica,
a diferença não seja objeto de exclusão ou motivação insensata para a
violência.
Contudo, no Ocidente, somos herdeiros de
um processo civilizatório cujo paradigma dominante se traduz, por incrível que
pareça, por um desejo de negação da diferença, dominação e exclusão do
desigual. Esse paradigma fundamentou o imaginário dos colonizadores mundo afora
e da exploração das gentes supostamente não civilizadas, segundo o crivo eurocêntrico
do passado.
Muitos
povos vivem, há séculos, marginalizados política, cultural e economicamente
experimentando, assim, o amargor de uma inferioridade inventada e imposta, com
seus efeitos colaterais danosos que se estendem na esteira do tempo,
alimentando a mágoa, revolta e o desejo de aniquilação do opressor em várias
gerações.
Nada obstante, a opressão não justifique
qualquer forma de violência, ela explica parte da causalidade dessa sombria
manifestação humana que ainda viceja em vários contextos. Mas é bom que se diga
que ela é um tema complexo, sendo merecedora de abordagens e ações referenciadas
em um olhar transdisciplinar e profundamente compassivo.
Parafraseando Ubiratan D’Ambrósio[3],
educador e pesquisador brasileiro que teve ensejo de problematizar o paradigma
dominante, podemos dizer que as três grandes distorções deste modelo foram: a
leitura das diferenças humanas compreendidas como estágios diversos de evolução,
fundamentando uma visão hierárquica entre pessoas e saberes; a precariedade
material, ou até simplicidade, como resultado da preguiça de alguns povos e uma
visão preconceituosa da espiritualidade alheia como falta de racionalidade
científica e, por último, a concepção de que a preservação de patrimônio
natural e cultural dos povos originários consistiria em obstáculo ao progresso
e à civilização.
No campo dos valores esse paradigma
fomenta a arrogância (do ter e do saber), a inveja (pautada no espírito
competitivo e numa ignorância total da realidade interdependente da vida) e a
prepotência (traduzida nos processos históricos de dominação, genocídio,
epistemicídio e exploração). Em bom vocabulário espiritista, estamos diante de
uma visão de mundo que se nutre e fomenta o egoísmo.
O mestre Allan Kardec, ao reflexionar sobre
as relações entre educação e egoísmo, obstáculo ao nosso trânsito espiritual para
mais elevadas condições na escala espírita, diz-nos:
“De todas as chagas morais da
sociedade, o egoísmo parece a mais difícil de extirpar. Com efeito, ela o é
tanto mais quanto mais alimentada pelos mesmos hábitos da educação. Tem-se a
impressão que, desde o berço, a gente se esforça para excitar certas paixões
que, mais tarde, se tornam uma segunda natureza, e nos admiramos dos vícios da
sociedade, quando as crianças os sugam com o leite.”[4]
Da citação do mestre é fácil depreender
que os processos educativos a que somos acometidos, nas circunstâncias espirituais
necessárias à superação de nós mesmos, recebemos, não raro, a excitação das
paixões inferiores e incentivos negativos que reforçam o egoísmo como diretriz
comportamental, lastimavelmente. Aliás, muitas posturas familiares errôneas,
identificadas por Allan Kardec no século XIX, ainda estão presentes hoje e
servem de reforço para identificação negativa para com condutas que vão do
egoísmo infantil até os crimes de lesa-humanidade.
Numa sociedade orientada por um horizonte
materialista, em que o ter é mais importante que o ser, cujos valores
autoafirmativos em vigor são disseminados nas instituições, as mais variadas
(até as que se referenciam como de “educação”), pode parecer ridículo propor um
olhar sobre a vida que abarque valores como cultura de paz, altruísmo ou
alteridade. A palavra de ordem ainda é a da competição por coisas que a
impermanência da vida corporal revela como quiméricas e, vale lembrar, que o
ser humano se posta de forma belicosa na defesa de suas ilusões.
Fritjof Capra, físico teórico e ativista
do paradigma sistêmico, postulou oportunamente: “A mudança de paradigmas requer uma expansão não apenas de nossas
percepções e maneiras de pensar, mas também de nossos valores.”[5] Penso,
por minha vez, que só a educação integral do ser, com base em novos
horizontes epistemológicos e numa ética da diversidade, pode fazer uma
revolução paradigmática em que a cultura de paz – quer dizer, da não violência
ativa, da não-cooperação com qualquer forma de opressão, violência ou
discriminação de outro ser – seja um forte valor orientador.
Quem sabe o saber da reencarnação,
compreendido em bases científicas e na problematização filosófica necessária,
não poderia trazer como consequência uma espiritualidade de base plural, laica,
desapegada de dogmas, sem projeto de hegemonia ideológica, livre da
intolerância, da negação da razão como um valor pertinente para a constituição
de uma relação saudável com o sagrado, tanto quanto, com o outro, aquele que é diferente
de nós?
O ataque a Charlie Hebdo, em Paris,
revela duas facetas terríveis do egoísmo elevado ao grau superlativo que ainda vigora
na alma humana: o fundamentalismo - se de fato o ato se fundamentar numa
vingança por Maomé contra a equipe do periódico – e a xenofobia, em voga na
Europa a partir de movimentos de ultradireita que se posicionam, na esfera
pública, com campanhas contra a expansão do Islã e a integração dos mulçumanos
na comunidade européia.
A xenofobia é um fundamentalismo étnico e
nacionalista que se expressa numa aversão a pessoas estrangeiras ou qualquer
manifestação cultural que delas advenha, comum numa Europa com dificuldades de
assimilar a diferença e lidar com as exigências que ela apresenta na agenda política
e social.
Quanto ao fundamentalismo religioso, eu o
considero uma expressão falsa de transcendência de indivíduos cuja fé se torna
fechada ao diálogo com outras lógicas de raciocínio na relação com o sagrado. O
fundamentalista cerra o coração ao diálogo possível com irmãos inseridos
noutras crenças, que aderiram a diferentes formas de espiritualidade.
Nesses dias de intolerância, ódio e
xenofobia, sejamos da paz movendo-nos a serviço desta como um valor fundamental
em nossas existências. Procuremos estender os nossos horizontes intelectuais a
outras epistemologias, modos de pensar, viver e produzir a vida, tanto quanto,
à diversidade religiosa e étnica.
Somos seres de transcendência, de
superação dos interditos da matéria e das barreiras culturais para, através da
pluralidade das existências, prosseguirmos intimoratos em nossa jornada rumo a
novos patamares da evolução, na medida em que a inteligência se apropria das Divinas
Leis e aprimoramos a nossa vida moral no sentido do amor.
Abraçados na causa da paz, façamos dela
uma pauta pertinente nos processos educativos em que atuamos. Assumamos
posturas menos belicosas no cotidiano, exercitemos a nossa vocação à
comunicação compassiva, ao encontro empático com o outro, fazendo jus aos
valores espirituais que dizemos abraçar.
Eduquemos nossos filhos numa ética da
diversidade, onde a abertura ao outro, ao diferente, seja uma presença no campo
da solidariedade e da autoeducação.
No caso de sermos adeptos da Filosofia
Espírita, nos esforcemos por educar nossos filhos com base no que ela tem de
melhor, sem nos fecharmos a outras contribuições, que seria uma disparatada
versão de fundamentalismo enraizado na ignorância.
Entre os valores humanos manifestos no
Espiritismo está a tríade que se configura na caridade, segundo o registro de
Allan Kardec: benevolência, perdão e indulgência[6].
Observemos que o fundador da Ciência Espírita interroga os Espíritos a respeito
do sentido da palavra caridade no que tange ao entendimento de Jesus, ou seja, em
conformidade com os seus luminosos ensinos.
Esses três valores ainda são alvo de
comentário de Kardec no texto em questão, recordando que “O amor e a caridade
são o complemento da lei de justiça. pois amar o próximo é fazer-lhe todo o bem
que nos seja possível e que desejáramos nos fosse feito. Tal o sentido destas
palavras de Jesus: Amai-vos uns aos outros como irmãos.”
Para que nossos filhos manifestem ao
mundo uma cultura de paz alicerçada na disposição para o diálogo, na
compreensão das diferenças, no saber aprender com outras perspectivas, inspirada
na humildade epistêmica tão necessária à complexidade dos tempos vividos, é
necessário que sejamos, nós outros, também atentos aquela tríade, a fim de que nos
façamos pacificadores em nosso trato com eles e nas lutas que nos cercam. Não
esqueçamos, o exemplo é excelente ferramenta pedagógica.
Paz e bem!
[1] Educador e editor do blog www.saberesdoespirito.blogspot.com
.
[2] Instruções dos
Espíritos sobre a regeneração da humanidade. In: Revista Espírita, Outubro de
1886.
[3] D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Transdisciplinaridade.
São Paulo: Palas Athena, 2001.
[4] KARDEC, Allan. Primeiras lições
de moral da infância. In: Revista Espírita, fevereiro de 1864.
[5] CAPRA, Fritjof. A teia da
vida: uma nova compreensão científica. São Paulo: Cultrix, 2006.
[6] O Livro dos Espíritos, questão
886.