segunda-feira, 22 de junho de 2015

Brevíssimo apontamento a partir do prefácio de O céu e o Inferno de Allan Kardec[1]




Vinícius Lima Lousada[2]

(...) O Evangelho segundo o espiritismo representou um avanço; o Céu e o Inferno é um avanço ainda maior cujo alcance será facilmente compreendido, posto que toca o essencial de certas questões, contudo, não deveria ter aparecido prematuramente.                                                                      – Allan Kardec[3]

           
            Allan Kardec, pouco a pouco, vai se revelando ao leitor como o pensador maduro, comprometido com a filosofia que pretende desenvolver a partir das revelações trazidas pelos Espíritos em sua pesquisa sobre o mundo invisível.
            O observador atento, que se constituiu nesse educador da era nova, pesa com sobriedade as palavras, administra racionalmente o movimento de ideias ao qual é guindado como chefe, por pioneirismo científico e acolhimento coletivo. Ele vai apresentando progressivamente o desdobramento da Doutrina dos Espíritos em um formidável trabalho interexistencial, sob a orientação do Espírito de Verdade, o Mestre de todos nós, como um dia se referiu o Espírito Erasto[4].
            Na epígrafe em tela, o Allan Kardec destaca o avanço nas ideias espíritas, corporificado na obra O céu e o Inferno, como até maior do que o ocorrido com a publicação de O evangelho segundo o espiritismo. Mas o que o levaria a fazer tal afirmativa? Observemos, caro leitor, a epígrafe cujo texto retiramos do prefácio escrito pelo fundador da Ciência Espírita, ali o mestre se reporta ao alcance da obra e às questões que o seu conteúdo atingiria.
            Esta obra fundamental do Espiritismo aborda o intrigante tema da vida futura ou do porvir do ser humano que sempre inquietou a humanidade e encontrou eco nas reflexões propostas por diversos pensadores que figuraram na História da Filosofia. Muitas foram as ideias e sistemas erigidos, mas nenhum deles trouxe, antes de Allan Kardec, a sansão dos fatos observáveis a partir do diálogo investigativo com aqueles que já ultrapassaram a “fronteira” que separa o mundo corpóreo do mundo espírita ou dos Espíritos.
            O livro toca nos temas que vigoravam entre os dogmas teológicos e, o seu alcance, poderia ser antevisto na possibilidade, deduzo, de trazer racionalidade à fé, tendo em vista que, não sendo o espiritismo uma religião constituída não tinha por propósito converter ninguém à sua perspectiva e nem fazê-lo a abandonar à própria fé, aliás, dizia o mestre no diálogo com o padre:

     “(...) o Espiritis­mo vem derramar luz sobre grande número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião; e a prova disso é que ele conta entre os seus aderentes homens de todas as crenças, que por esse fato não renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos que não deixam de praticar todos os deveres do seu culto, quando a Igreja os não repele; protes­tantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e mesmo budistas e bramanistas.[5]

  Kardec estava convencido de que o Espiritismo não era uma religião, aliás, na mesma obra destaca que quem teve a iniciativa errônea de colocá-lo nesse patamar foi a igreja dominante à época. Pelo contrário, o Espiritismo, na esteira do pensamento iluminista, vinha esclarecer questões obscuras no campo da fé humana, mas não com teorias pré-concebidas ou dogmas religiosos, mas com a sanção dos fatos espíritas, observados e levados à verificação experimental, bem como, considerados no desdobramento filosófico de suas consequências morais.
 Em consonância com o princípio de liberdade de consciência, preconizado pela Doutrina dos Espíritos, Allan Kardec faz ver que os espíritas poderiam cultivar a sua fé religiosa no campo da esfera pessoal e adotar por convicção a nova filosofia. Logo, era normal ter o seu culto particular e ser adepto do Espiritismo, algo difícil de ser compreendido numa visão que ignorasse o verdadeiro caráter da Doutrina e a sua intencionalidade filosófica, no sentido de postar-se como aliança possível entre a ciência e a religião, contribuir com a unidade de crenças e, por consequência, fomentar a tolerância religiosa.
Além disso, ao invés de disputar adeptos, no arrojado projeto do Espiritismo estaria o desejo de combater a incredulidade, fosse pela lógica irretorquível de sua filosofia, fosse pela apresentação de uma quantidade de fatos observáveis, sobejamente registrados por Kardec e publicados, especialmente, na Revue.
O céu e o inferno está disposto em duas partes que compreendem o estudo da Doutrina e a descrição da condição moral de diversos Espíritos, constituindo-se em “guia do viajante antes de entrar em um novo país”, conforme observa Kardec (idem). Esse livro extraordinário apresenta um profundo estudo filosófico das alternativas apresentadas para a humanidade no tocante à vida futura, disponibiliza, mais uma vez, a tese espírita da imortalidade da alma objetificando o seu estado de felicidade ou infelicidade no mundo dos Espíritos, com base nos relatos dados pelos próprios mortos, outrora “proibidos” por Moisés e as igrejas de atenderem o convite à manifestação neste mundo, junto aos seus ou a qualquer outro interessado na sorte dos que partiram desta materialidade.
A doutrina e os exemplos apresentados na obra derrubam os dogmas das penas eternas, dissonantes da compreensão de Deus lecionada por Jesus de Nazaré e incapaz de convencer uma criança em tempos de primado da razão, como se esperava no século XIX.

           



[1] Devo destacar ao leitor que utilizei-me da tradução do primeiro Préface, publicado por Kardec, feita pelo pesquisador Augusto C. de Araújo, conforme encontramos em KARDEC, Allan. Préface. In: ______. Le Ciel et l’Enfer ou la Justice Divine selon le Spiritisme. Paris : Ledoyen, Dentu, Fréd. Henri, 1865. p. I-VIII. Tradução: Augusto César Dias de Araujo. Revisão: Vital Cruvinel. Acessível em: http://acdaraujo.blogspot.com.br/2011/11/o-prefacio-quase-esquecido-da-primeira.html. Acessado em 19/06/2015.
[2] Educador, pesquisador, editor do blog www.saberesdoespirito.blogspot.com, residente em Bento Gonçalves/RS.
[3] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Ou a justiça divina segundo o espiritismo. Prefácio. In: KARDEC, Allan. Préface. In: ______. Le Ciel et l’Enfer ou la Justice Divine selon le Spiritisme. Paris : Ledoyen, Dentu, Fréd. Henri, 1865. p. I-VIII. Tradução: Augusto César Dias de Araujo. Revisão: Vital Cruvinel. Acessível em: http://acdaraujo.blogspot.com.br/2011/11/o-prefacio-quase-esquecido-da-primeira.html. Acessado em 19/06/2015.
[4]______. Revista Espírita de novembro de 1861. Reunião geral dos Espíritas bordeleses - Primeira epístola de Erasto.
[5] KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Diálogo com o padre.