segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Benfeitores Anônimos - Allan Kardec



(Revista Espírita 10/1863 )



O fato seguinte é relatado pela Patrie, de abril último:


“O proprietário de uma casa à rua do Cherche-Midi, tinha permitido anteontem que o inquilino se mudasse sem saldar a conta, mediante um reconhecimento de débito. Mas enquanto carregavam os móveis o proprietário arrependeu-se e quis ser pago antes da retirada dos móveis. O locatário se desesperava, sua mulher chorava e dois filhos em tenra idade imitavam a mãe. Um cavalheiro, condecorado com a Legião de Honra, pas­sava no momento por aquela rua. Parou. Tocado por esse es­petáculo desolador, aproximou-se do infeliz devedor, e, sabedor da quantia devida pelo aluguel, entregou-lhe duas notas e desa­pareceu, acompanhado pelas bênçãos daquela família, que sal­vava do desespero.”


A “Opinion du Midi”, jornal de Nimes, em julho relatava outro caso do mesmo gênero;


“Acaba de passar-se um fato tão estranho, pelo mistério com que se realizou, quão tocante por seu objetivo e pela de­licadeza do procedimento do seu autor.


“Há três dias noticiamos que um violento incêndio tinha consumido quase que inteiramente a loja e as oficinas de um Sr. Marteau, marceneiro em Nîmes. Contamos a dor desse in­feliz em presença de um sinistro que consumava a sua ruína, pois o seguro que tinha feito era infinitamente inferior ao valor das mercadorias destruídas.


“Soubemos hoje que três carretas contendo madeira de vá­rias qualidades e instrumentos de trabalho foram levadas à frente da casa do Sr. Marteau e descarregadas em suas ofici­nas, meio devoradas pelo fogo.


“O encarregado das carretas respondeu às interpelações, ale­gando a ignorância em que se achava relativamente ao nome do doador, cuja vontade executava. Pretendeu não conhecer a pessoa que o havia encarregado de transportar a madeira e os utensílios ao Sr. Marteau, e nada saber fora dessa comissão. Retirou-se após ter descarregado as três viaturas.


“A alegria e a felicidade substituíram no Sr. Marteau o aba­timento de que era impossível tirá-lo desde o dia do incêndio.


“Que o generoso desconhecido, que tão nobremente veio em socorro de um infortúnio que, sem ele, talvez tivesse sido irreparável, receba aqui os agradecimentos e as bênçãos de uma família que, desde hoje, lhe deve a mais doce consolação e que em breve talvez lhe deva a prosperidade.”


O coração fica novamente sereno ao se ler fatos semelhan­tes, que vêm, de vez em quando, fazer a contrapartida dos relatos de crimes e torpezas que os jornais exibem em suas co­lunas. Fatos como os acima relatados provam que a virtude não está inteiramente banida da terra, como julgam certos pes­simistas. Sem dúvida o mal ainda domina, mas quando se procura na sombra, verifica-se que, sob a erva daninha há mais violetas, maior número de boas almas do que se espera. Se elas aparecem tão esparsas, é que a verdadeira virtude não se põe em evidência, por ser humilde; contenta-se com os prazeres do coração e a aprovação da consciência, ao passo que o vício se instala afrontosamente, em plena luz; faz barulho, porque é orgulhoso. O orgulho e a humildade são os dois pólos do co­ração humano: um atrai todo o bem; o outro, todo o mal; um tem calma; o outro, tempestade; a consciência é a. bússola que indica a rota conducente a cada um deles.


O benfeitor anônimo, como aquele que não espera a morte para dar aos que, não têm, é, sem contradita, o tipo do homem de bem por excelência; e a personificação da virtude modesta, que não busca aplausos dos homens. Fazer o bem sem osten­tação é sinal inconteste de grande superioridade moral, porque é necessária uma fé viva em Deus e no futuro, abstração feita da vida presente e identificação com a vida futura para es­perar a aprovação de Deus e renunciar à satisfação proporcionada pelo testemunho atual dos homens. O obsequiado abençoa de coração a mão generosa e desconhecida que o socorreu, e essa bênção sobe ao céu mais que os aplausos da multidão. Aquele que preza mais o sufrágio dos homens que o de Deus prova ter mais fé nos homens do que em Deus e que a vida presente lhe é mais que a vida futura. Se disser o contrário, age como quem não crê no que diz. Quanta gente que não faz obséquios senão com a esperança de ver o obsequiado pro­clamar o benefício do alto dos telhados! que em plena luz daria uma grande soma, mas na obscuridade não daria uma simples moeda! Eis por que disse. Jesus: Os que fazem o bem com ostentação já receberam sua recompensa.” Com efeito, àquele que busca sua recompensa na terra, Deus nada deve; só lhe resta a receber o preço de seu orgulho.


Que relação tem isto com o Espiritismo? talvez perguntem certos críticos. Quantos casos mais divertidos não contareis do que esta moral fastidiosa! (Jugement de la morale spirite, do Sr. Figuier, IV vol. pág. 369). Isto tem relação no sentido que o Espiritismo, dando uma fé inabalável na bondade de Deus e na vida futura, graças a ele, fazendo os homens o bem pelo bem, serão um dia menos esparsos do que hoje; os jornais terão menos crimes e suicídios a registrar e mais atos da natureza dos que deram lugar a estas reflexões.