segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O papel das religiões num mundo conturbado

Vinícius Lousada

Antes de qualquer coisa, parece-me muito oportuno pensarmos um pouco sobre o papel que deveria caber às religiões, de um modo geral, num mundo conturbado como o nosso, em que uma pós-modernidade desvairada têm imposto aos indivíduos um modo de ser e estar no mundo desamparado de valores superiores. Vislumbramos no campo da convivência social a propagação de uma ética imediatista e utilitária que desrespeita o dever de considerarmos, em nossas atitudes, a felicidade do próximo.


Essa ética forjada no seio de uma filosofia de vida materialista e de práxis consumista, estabelece a desordem social e materializa o egoísmo humano de forma avassaladora invadindo, inclusive, o âmbito dos espaços destinados à propagação da fé e da espiritualidade.


Alerta-nos o benfeitor Espiritual Camilo que

“O materialismo penetrou o seio das instituições religiosas inauguradas no mundo, e elas passaram a ser governadas pelo espírito de astúcia, de engodos, de exploração sentimental, de irracionalidade, e quase tudo o que se costuma buscar nas casas de fé tem sido o auxílio divino para a melhora da vida material que enseje a chance de ter, de adquirir, de comprar, de consumir, de ganhar mais no afã de se construir o Reino dos Céus aqui mesmo, por entre os mexinflórios da Terra . (...)”[1]


Desse modo, fica nítido que a invasão do materialismo, no âmbito das relações humanas com o sagrado, faz com que as religiões desnaturem o seu propósito original de conectar o indivíduo com a Causa Primária, auxiliando-o no seu processo de espiritualização que, por sua vez, passaria pelo despertar paulatino da consciência às Leis Divinas.


Assim, caberia às religiões ensinarem aos indivíduos como se encontrarem com Deus, inspirando-lhes o caminho reto das virtudes através de um código ético que não deveria se misturar à mesquinhez humana, devendo ser tão puro quanto a sua fonte inspiradora: a crença inata da criatura na existência do Criador.


No entanto, a espécie humana é hábil em argumentos e atitudes para afastar as religiões de seus nobres propósitos na Terra, o que é facilmente verificável nas páginas da história do pensamento religioso, inclusive contemporâneo, quando variadas instituições se envolveram em conflitos bélicos santificados à força da doutrinação dogmática de magotes expressivos de seus adeptos, adotando posições intolerantes em relação aos indivíduos que se davam ao direito de pensar com liberdade de escolha, nem sempre rezando conforme os dogmas estabelecidos.


Mas o papel fundamental das religiões, num mundo conturbado por propostas materialistas e niilistas - defensoras da desesperança e do pessimismo como vemos na atualidade – deveria estar em despertar o ser humano à espiritualidade, ou seja, aos valores éticos que se vividos contribuem no processo de iluminação interior para o qual estamos mergulhados na carne, reiteradas vezes, pelo fenômeno natural da reencarnação.


Lembra o teólogo e filósofo Leonardo Boff que espiritualidade está “relacionada com aquelas qualidades do espírito humano (...) que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros.”[2] Quer dizer, a espiritualidade que deve ser fomentada pelas religiões, tanto quanto pelas filosofias espiritualistas, consiste na promoção das virtudes do Espírito, totalmente voltada ao consciente progresso espiritual do ser.


A vivência da espiritualidade, enfim, promove a aprendizagem da virtude, essa disposição da criatura à manifestação do bem por pensamentos, palavras e atos, gerando-lhe um estado de plenitude íntima que influencia positivamente a todos com os quais convive. Em suas ações locais, o sujeito virtuoso gera benefícios globais para a grande família humana no sentido da paz e da fraternidade universal.


Tenzin Gyatso, o XIV Dalai Lama, eminente liderança espiritual engajada na paz do mundo e no diálogo inter-religioso, ratifica o pensamento acima exposto sobre o papel das alternativas religiosas quando afirma num de seus brilhantes escritos: “o objetivo da religião como um todo é tornar mais fácil o exercício do amor, da compaixão, da paciência, da tolerância, da humildade, da capacidade de perdão e de todas as outras qualidades espirituais.”[3]


Enfim, a função das religiões nesses dias de desassossego social deverá ser de agência educativa no campo das virtudes regeneradoras do Espírito, contribuindo com o mesmo no esforço em praticá-las, para além dos templos, na vida de relação com os outros e com o mundo, meio pelo qual nos fazemos capazes de ascender em nossa jornada evolutiva.


ESTUDANDO KARDEC:


“O Espiritismo é uma doutrina moral que fortifica os senti­mentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões, E de todas, e não é de nenhuma em particular. Por isso não diz a ninguém que a troque. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela consciência, pois Deus leva mais em conta a intenção do que o fato. Ide, pois, cada um ao templo do vosso culto; e assim provareis que vos caluniam, quando vos taxam de impiedade.”[4]



[1] TEIXEIRA, J. Raul. Nos passos da vida terrestre. Pelo espírito Camilo. Niterói, RJ. Fráter Livros Espíritas, 2005, p. 111.
[2] BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006, p. 15.
[3] GIATZO, Tenzi. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2006, p. 170.
[4] Revista Espírita, fevereiro de 1862 - Resposta dirigida aos Espíritas Lionenses por ocasião do Ano-Novo.