quarta-feira, 22 de maio de 2013

Espiritismo, do que se trata mesmo?






Vinícius Lousada[1]



Então, o que é o Espiritismo?

                Oportunamente, o professor Herculano Pires teve o ensejo de afirmar: “O Espiritismo, nascido ontem, nos meados do século passado, é hoje o Grande Desconhecido dos que o aprovam e o louvam e dos que o atacam e criticam.”[2] Essa afirmativa acaba por nos fazer entender que essa jovem filosofia espiritualista ainda é ignorada, seja por parte de seus adeptos seja pelos seus detratores.
Ao tempo de Kardec, como ainda hoje, aqueles que nada sabem do Espiritismo tendem a tomá-lo pelo que ele não é: mais uma religião ou seita, com seus mistérios, supostos sacerdotes dedicados a consultar na penumbra os mortos para os fins mais variados, conforme a prodigalidade da imaginação do crítico, por sua vez, incapaz de ser levado a sério até mesmo pelo mais caridoso adepto do Espiritismo, em função da falta de compromisso da crítica infundada com a verdade. Opinar sobre o que se desconhece revela a leviandade do opinante.
Por outro lado, a afirmação de Herculano está a nos dizer que os espíritas necessitam conhecer bem o Espiritismo, estudando a fundo a doutrina kardequiana para assim edificar na alma a convicção dos princípios filosóficos que dizem adotar, aproveitando-os para o seu progresso espiritual.
                Mas, para atender a questão proposta no título desse texto é importante considerar as anotações de Allan Kardec no sentido de formular uma conceituação da Doutrina dos Espíritos: diz o mestre: “O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, consiste nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais decorrentes dessas relações.”[3]
Aliás, em O Livro dos Espíritos, ele define o Espiritismo numa tríade. Diz ele: “O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o das manifestações, o dos princípios e da filosofia que delas decorrem e o da aplicação desses princípios.”[4] O aspecto das manifestações consiste no ângulo experimental ou científico onde estas são objeto de observação, e está relacionado ao paradigma das ciências positivas do século XIX, embora Kardec não se confine nele ao estruturar as bases de uma ciência delineada na colaboração interexistencial[5], cujo método e consequências filosóficas nascem na parceria estabelecida por ele com médiuns e Espíritos na pesquisa perseverante das comunicações espontâneas ou daquelas obtidas mediante a evocação de Espíritos.
Vejamos que o conceito apontado assinala o Espiritismo como uma ciência filosófica com consequências morais e, como nos escritos de Allan Kardec nenhuma palavra é vã, hábito do educador Rivail que procurava ter exatidão no que escrevia para bem comunicar suas ideias, procuremos estudar aqui as categorias de pensamento “ciência”, “filosofia” e “moral” para construirmos um entendimento sobre a natureza do Espiritismo, tendo em vista a pergunta geradora dessa reflexão.
Para tanto, tomo a liberdade de recorrer a um dicionário de filosofia que considero didático e cuja familiaridade com o mesmo nasce do cotidiano do meu ofício de professor. Trata-se do Dicionário Básico de Filosofia[6]
               


Ciência Espírita

Ali encontramos um conceito mais clássico e outro que pode ser considerado moderno sobre o verbete ciência. Os autores do dicionário consideram ciência como um conjunto de conhecimentos adquiridos metodicamente, sistematizados e capazes de serem transpostos didaticamente para o ensino, tendo em vista sua apropriação e difusão. Ciência pode ser concebida como uma modalidade de saber formada por uma gama de aquisições intelectuais que pretende dar uma explicação racional e objetiva da realidade, ou de algum fenômeno. E eu acrescentaria: através do controle, experimentação e universalização de resultados.
Vale lembrar, como diz Edgar Morin, que “As teorias científicas surgem dos espíritos humanos no seio de uma cultura hic et nunc.”[7] Desse modo, a parte experimental do Espiritismo, em sua fundação, está mergulhada em um contexto que lhe matiza com as tintas da racionalidade científica daquela época, que era de viés positivista, nada obstante, Kardec extrapole de forma produtiva os limites impostos pelo paradigma científico então dominante.
                O Espiritismo, sendo ciência de observação, tem por objeto de investigação as relações dos Espíritos com o mundo corpóreo, como asseverou outrora Kardec na obra O que é o Espiritismo. Sua metodologia de pesquisa está bem descrita por ele em O Livro dos Médiuns, de onde se depreende um modo seguro de lidar com os Espíritos em reuniões sérias. Através dessa metodologia foi tirado o véu que encobria parte da percepção do mundo invisível e fez-nos entrever a imortalidade da alma atestada pelos fatos que a mediunidade apresenta.
Pelos registros presentes em a Revista Espírita, publicada por Kardec de 1858 a 1869, compreende-se que nas reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, fundada pelo mestre em 1858, o diálogo com os Espíritos tinha finalidade educativa bem clara, sendo a mesma um princípio orientador da metodologia empregada. O mestre, ao dirigir os trabalhos mediúnicos, evocava Espíritos Superiores para questioná-los sobre temas filosóficos de grande profundidade, através dos médiuns que atuavam na Sociedade. Doutras vezes as comunicações se apresentavam de forma espontânea. Até mesmo com os Espíritos sofredores, ao colaborar com a educação deles pela palavra fraternal e esclarecedora, Kardec pinçava saberes úteis para a caminhada do ser humano no mundo, tendo em vista a evolução espiritual de encarnados e desencarnados.
Jamais tomou qualquer Espírito como revelador privilegiado e nem as teses deles como verdades absolutas. Fazia comparação dos ensinamentos, tanto aqueles colhidos nas reuniões em Paris como os oriundos de correspondência com outros grupos, recebidos através de médiuns desconhecidos daqueles primeiros. Outras vezes o ensino espontâneo em diversos grupos de localidades distintas convergia para a sociedade de Paris e, em todos os casos, o mestre empreendia o exame racional e a comparação das comunicações, extraindo desse modo, no elemento comum, um postulado filosófico do Espiritismo ou um ensinamento digno de se dizer espírita, por não se tratar de um sistema de ideias particular de um Espírito ou de um só médium. Kardec chamou esse meio de verificação de controle universal do ensino dos Espíritos[8].
                Outro elemento interessante da Ciência Espírita decorre do fato de ela ser apresentada como progressista, na base kardequiana, e dialógica em relação às ciências ordinárias. Nesse sentido apontou o insigne mestre: “O Espiritismo, marchando com o progresso, jamais será ultrapassado porque, se novas descobertas demonstrassem estar em erro sobre um certo ponto, ele se modificaria sobre esse ponto; se uma nova verdade se revelar, ele a aceitará.”[9]

 Edgar Morin


Filosofia Espírita

Para tornar inteligível o aspecto filosófico do Espiritismo parece ser conveniente conceituar filosofia, muito embora, essa também não seja tarefa simples. É possível ver a filosofia como exercício de busca ou “amor da sabedoria” (Pitágoras). Dessa forma, no dicionário já referido, encontramos a filosofia retratada como uma busca pela apropriação dos princípios em que se estriba um saber. Na tradição filosófica, ao longo de sua História, a filosofia chegou a ser entendida como a totalidade do saber.
Na Idade média foi posta como serva da Teologia que procurava dar-lhe fundamento sem que a atividade filosófica devesse questioná-la. Já na modernidade a filosofia aparece como a aventura da emancipação do pensamento religioso, estabelecendo-se como investigação dos “primeiros princípios”, e assim contribuindo com a ciência em seus fundamentos, consequências e com a análise das razões da ação humana. Contemporaneamente, a filosofia propõe a dúvida, o ceticismo saudável, e o pensamento crítico em torno do ser humano, do mundo, do próprio saber...
A Filosofia Espírita surge com a publicação de O Livro dos Espíritos, de onde se depreendem os princípios e os desdobramentos filosóficos, depois desenvolvidos nas demais obras fundamentais[10] trazidas a lume. É uma filosofia que ensina o autoconhecimento como instrumento indispensável à evolução intelecto-moral do Espírito e “Sendo o Espiritismo uma nova visão do homem e do mundo, caracteriza-se como um pensar filosófico, como uma filosofia estruturada na pesquisa do conhecimento, do ser e do universo. Tendo base experimental, seu filosofar é existencial, atua no mundo para modificá-lo.”[11] E, acrescentaríamos, tem um profundo potencial para transformar o mundo a partir do indivíduo. “Sua força está na sua filosofia, no apelo que dirige à razão, ao bom-senso.”[12]
Logo, o aspecto filosófico retrata os princípios e ensinamentos dos Espíritos Superiores recolhidos e organizados por Allan Kardec, somados ao seu contributo nas reflexões e desdobramentos que propõe às lições dos imortais nas obras fundamentais da Doutrina. O Espiritismo desencadeia, a partir da apreciação que podemos ter dos princípios que exara, uma moral que conduz o adepto à ética do amor lecionada por Jesus. Essa moral não está enclausurada nas teologias do cristianismo dos homens, mas está viva na espiritualidade subjacente ao Cristianismo do Cristo, presente no conteúdo da Filosofia Espírita.

Prof. Herculano Pires



Moral Espírita

                A palavra moral se refere aos costumes de uma sociedade ou cultura, em um sentido restrito. Já, em um significado mais amplo, como assinala o Dicionário Básico de Filosofia, pode ser vista como sinônimo de ética, como teoria dos valores que regulam a conduta humana, de forma normativa ou prescritiva. Pode ser distinguida em uma moral do bem e do dever, ou seja, o que define o que é o bem para o ser humano e o que ele deve fazer.
                Em O Livro dos Espíritos, encontramos uma conceituação de moral que está na sintonia do que se verifica na explicitação do termo acima, da moral como ética que nos aponta o sentido do bem e como realizá-lo. Dizem os Espíritos interlocutores de Kardec: “A moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal. Funda-se na observância da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus.”[13] Vejamos que essa definição estabelece a moral na prática do bem, na vivência da razoabilidade ética que diferencia o bem do mal, fundamentada nas Leis Divinas, cujo parâmetro do que se deve fazer está na consideração do que é o bem da coletividade.
                Cabe ao indivíduo, no areópago da própria consciência, fazer uso da inteligência para diferenciar o que é bem e o que é mal[14]. Um recurso disponível para evitar possíveis enganos nessa diferenciação no plano das relações humanas está na aplicação do que Kardec chamou de lei da solidariedade ou reciprocidade[15]. Aliás, o mestre afirmou em um momento: “A moral dos Espíritos superiores se resume, como a do Cristo, nesta máxima evangélica: Fazer aos outros o que desejamos que os outros nos façam", ou seja, fazer o bem e não o mal. O homem encontra nesse princípio a regra universal de conduta, mesmo para as menores ações.”[16]
                Todavia, no procedimento para consigo mesmo, onde essa máxima não teria alcance, o parâmetro para o bem é o limite da necessidade que a Lei Natural impõe. Quando é ultrapassado esse limite o autor da ação lhe sofre as consequências, como simples resultado da ausência de contenção. O sofrimento causado pela ausência de limites é de acordo com a ação empreendida, cabendo a cada um preveni-lo na conduta moderada em tudo. Já disse a sabedoria ancestral: nada em excesso!
                Encontramos proposições para a aplicação da moral espírita na análise que Allan Kardec faz da conduta da pessoa de bem, apresentando didaticamente a ética que decorre dos ensinamentos espíritas. Vale a pena meditar sobre esse texto e perceber os caminhos possíveis de uma conduta equilibrada e sábia que o mestre sintetiza nessa frase: “O verdadeiro homem de bem é o que cumpre a lei de justiça, de amor e de caridade, na sua maior pureza.”[17]
                Para bem avaliarmos o quanto essa ética orienta a nossa conduta, consideremos que o conhecimento de si mesmo é saber fundamental, verdadeira “chave do progresso individual”[18]. Praticar a ética do homem de bem, que é a ética de Jesus, e analisar-se em vista do aprimoramento pessoal são ações que, juntas, formam indubitavelmente um excepcional roteiro para quem deseja entender o Espiritismo em profundidade e dar atenção ao objetivo essencial de sua proposta filosófica que é tornar melhor o ser humano.





[1] Educador e pesquisador.
[2] PIRES, Herculano. Curso dinâmico de Espiritismo: o grande desconhecido. São Paulo: Paideia, 1979, p. 11.
[3] KARDEC, Allan. O Espiritismo em sua expressão mais simples e outros opúsculos de Kardec. Tradução Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2007, p. 63.
[4] O Livro dos Espíritos. Conclusão, item VII.
[5] PIRES, Herculano. Curso dinâmico de Espiritismo: o grande desconhecido. São Paulo: Paideia, 1979, p. 58.
[6] JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 4. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
[7] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 13. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 25.
[8] O Evangelho segundo o Espiritismo, Introdução, item II.
[9] A Gênese: os milagres e as previsões segundo o espiritismo. Cap. I, item 55.
[10] Caso o leitor queira saber mais sobre as obras fundamentais do Espiritismo, convido-o a ler o artigo de nossa autoria intitulado “Por que ler Kardec?”, acessível em http://saberesdoespirito.blogspot.com.br/2009/06/por-que-ler-kardec.html.
[11] RÉGIS, Jaci.  Kardec foi um filósofo?. In: A Reencarnação. n º 401 - Ano L. Porto Alegre: FERGS, 1984.
[12] O Livro dos Espíritos, Conclusão, item VI.
[13] O Livro dos Espíritos, questão 629.
[14] O Livro dos Espíritos, questão 631.
[15] O Livro dos Espíritos, questão 633.
[16] O Livro dos Espíritos, Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita, item VI.
[17] O Evangelho segundo o espiritismo, cap. XVII, item 3.
[18] O Livro dos Espíritos, questão 919-a.