Casa de Pedra - VLL
Vinícius Lousada[1]
“Sabeis por que, às vezes, uma vaga tristeza se
apodera dos vossos corações e vos leva a considerar amarga a vida?”[2]
A melancolia
segundo os Espíritos
A
mim muito impressiona, cada vez que releio uma página, a atualidade das obras
fundamentais do Espiritismo. São atuais quanto ao seu conteúdo porque a leitura
pode revelar conceitos de uma profundidade filosófica e psicológica que vão ao
encontro dos conflitos existenciais de nossos dias, apesar de transcorrido
tanto tempo de sua publicação.
Um
exemplo do que me refiro acima está na mensagem “A melancolia”, publicada por
Allan Kardec em O Evangelho segundo o
Espiritismo, no item 25 de seu capítulo quinto. Nessa obra em que o mestre
se dedica a apresentar um estudo do Evangelho de Jesus numa leitura mais
espiritual do que as religiões tradicionais vinham apresentando, notadamente
com a chave do ensino dos Espíritos Superiores, destaca-se essa página
psicológica a respeito da qual me proponho meditar aqui.
O
Espírito François de Genéve, em uma página ditada provavelmente em um grupo
espírita bordelense, se dedica a caracterizar a melancolia delineando as marcas
que deixa na alma, sua causa espiritual e apresenta também estratégias de
superação desse sentimento, concitando o seu portador ao uso enérgico da
vontade para escapar do estado de prostração que a melancolia deixa naquele que
a cultiva.
Em
síntese, o autor espiritual caracteriza a melancolia como um sentimento de
tristeza que se apodera do coração levando o indivíduo a identificar a vida com
amargor. Em se demorando nessa postura sombria, pode-se cair na apatia,
lassidão e profundo abatimento sob o domínio da alma triste. Nessa condição,
julgamo-nos por demais infelizes.
Contudo,
o Espírito, autor do texto, não deixa de considerar que a aspiração por
liberdade é comum no Espírito reencarnado. As condições existenciais concretas em
que vivemos nos fazem desejar, inconscientemente, o gozo da liberdade
espiritual – experimentada muitas vezes nas atividades de emancipação da alma –,
na ânsia de afastarmo-nos dos problemas que enfrentamos, nada obstante, o fato
de que estes não passem de provas e expiações no roteiro do nosso progresso
espiritual, como depreendemos na Filosofia Espírita.
As provas consistem nas lutas
enfrentadas na vida corporal que são necessárias ao desenvolvimento do Espírito
em inteligência e moralidade. Por sua vez, as expiações consistem em
experiências mais exigentes nascidas em atitudes tomadas em desacordo com as
Divinas Leis. Desse modo, diante da “opressão” dos desafios da vida corpórea nos
sentimos abafados em nossas possibilidades e a realidade extrafísica pode parecer
mais atrativa por força do que a respeito dela trazemos nos arcanos do
inconsciente.
Certamente que uma demorada reflexão
acerca de si mesmo permite ao indivíduo perceber que a grande gênese de seus
conflitos está no seu planeta interno e
ele os conduz em qualquer dimensão da vida, a morte não elimina as dores da
alma. Allan Kardec, como pioneiro dos estudos psicológicos a luz da Ciência
Espírita pôde registrar, conforme encontramos na obra O Céu e o Inferno, que cada qual vive o estado de felicidade íntima
na vida espiritual conforme esse já se apresentava porque ninguém sofre mágica
transformação com o fenômeno da desencarnação.
Aliás, ensinam os Espíritos
co-autores de O Livro dos Espíritos
que “O homem é quase sempre o obreiro da sua própria infelicidade. Praticando a
lei de Deus, a muitos males se forrará e proporcionará a si mesmo felicidade
tão grande quanto o comporte a sua existência grosseira.”[3] Todavia,
deve ficar evidente que precisamos verificar o nível de tristeza que nos
invade, se está relacionada com o constrangimento que o corpo estabelece ao
Espírito ou se estamos experimentando um sentimento oriundo de dores morais
edificadas por nós, cabendo-nos o trabalho pessoal de superação dessa mazela.
A vontade de liberdade da alma
não deve significar desejo de morte, muito pelo contrário, deveria se instituir
em um impulso para instigar o ser na busca de saberes, ações e aspirações
elevadas em sintonia com o desenvolvimento dos seus próprios potenciais,
mobilizando-o ao crescimento e felicidade possível na Terra. Por outro lado, o
desejo funesto de morte revela um aprofundamento da tristeza que se configura
na patologia identificada como depressão, bem catalogada na medicina cujos
recursos terapêuticos o indivíduo, com o apoio de seus familiares, deve buscar.
A depressão, como vemos em interessante
artigo da terapeuta transpessoal Iris Sinoti[4], é
diferenciada da tristeza normal e pode ser compreendida como um distúrbio de
humor que desequilibra o universo emocional da pessoa. Consiste em uma
experiência subjetiva muito dolorosa, produtora de um sentimento profundo de
perda que degrada a psique do indivíduo. Os processos depressivos estão
marcados pela ausência de sentido existencial e alteram o modo com que a pessoa
lida com a sua subjetividade e com o mundo. Também, a depressão pode ser
encarada como um alerta da alma a fim de endereçar o enfermo para a busca de
sentido, o conhecimento de si mesmo e o cultivo do autoamor, estratégias
psicológicas necessárias para o encontro saudável consigo mesmo.
O vazio
existencial e a ausência de sentido
No século passado, ao se
dedicar a entender a solidão e a ansiedade do homem moderno, o psicólogo
americano Rollo May (2011) apontou o vazio existencial como um dos problemas
fundamentais da época. Ao se referir à “gente vazia”, ele se ocupa de
reflexionar sobre as razões psicossociais desse fenômeno em uma sociedade como
a nossa, infelizmente pautada em valores consumistas, onde muitas pessoas são assoladas
por aqueles conflitos em razão do descuido para com a própria subjetividade. “O
vácuo interior é o resultado acumulado, a longo prazo, da convicção pessoal de
ser incapaz de agir como uma entidade, dirigir a própria vida, modificar a
atitude das pessoas em relação a si mesmo, ou exercer influência sobre o mundo
que nos rodeia”[5]
Destaca, ainda com muita propriedade, firmada no cotidiano de sua práxis, que
as pessoas que sofrem desse vazio não somente ignoram o que querem, como
também, o que sentem. O que equivale a dizer que os vitimados pelo vazio
existencial em nossa sociedade desconhecem a si mesmos, experimentando, por
consequência, uma vida sem sentido forjada na direção imposta pela coletividade.
Para tanto, o grupo social estabelece valores erigidos como metas a serem
perseguidas inquestionavelmente que, por sua vez, funcionam como reguladores da
vida e do valor do indivíduo, mesmo que as suas consequências éticas sejam
pouco lúcidas ante o exame do bom senso.
Rollo May
Sobre
esse fenômeno psicológico do vazio existencial, é bom ter em conta que, ao desconhecer-se,
o indivíduo adere aos valores e normas sociais de um modo que a contrapartida
inevitável é a desagregação da própria identidade ante as determinações da “ditadura”
das vontades externas à sua. Nesse contexto, a falta de autonomia conduz o
indivíduo à necessidade de adaptar-se mais do que autorealizar-se, prática que
recalca a criatividade e as potencialidades do ser. A pessoa simplesmente se
ajusta de forma pouco reflexiva e nada criativa à sociedade enferma, perde a
referência de quem é e passa agir de forma normótica[6], passando
viver a patologia normalidade do grupo social.
Um caminho de superação da
desidentificação com o self[7] está
assinalado em O Livro dos Espíritos,
na questão[8] em que
os Benfeitores da Humanidade nos convocam, conforme o registro do mestre Allan
Kardec, ao conhecimento de nós mesmos mediante a problematização diária de
nossa conduta e suas razões. Trata-se de uma viagem necessária à saúde mental
tanto quanto ao nosso progresso espiritual. Suponho que o conhecimento de si
mesmo consiste em conquista que permite ao Espírito atribuir sentido à atual
reencarnação, colocando-a em um nível de vivência autoeducativa e, por esse
entendimento, de significado profundo e transcendente. Todavia, o sentido existencial
referido aqui deve ser atribuído pelo indivíduo em um exercício permanente de
autoconhecimento – não por outrem –, nada obstante a consciência esteja repleta
de significados construídos culturamente na vida atual e em outras.
Ao desenvolver
a Logoterapia a partir de suas vivências de prisioneiro em um campo de
concentração nazista, Victor E. Frankl[9]
também identificou o vazio existencial como um fenômeno do século XX, aliás,
que se alonga até o nosso. Segundo esse psiquiatra austríaco, entre as do vazio
existencial estariam a perda de alguns dos instintos básicos de nossa
ancestralidade ao longo da evolução da espécie humana e, mais recentemente, a
redução da importância das tradições como suporte para a definição das escolhas
dos indivíduos. Nesse caso específico, vivemos dias de uma pós-modernidade que
questiona as grandes narrativas, as formas fechadas de explicação do mundo e
nos incita à autonomia intelectual, muito embora, muita gente se entregue ao
entorpecimento da consciência ou ao niilismo nesse contexto desafiante à
racionalidade que se dobra sobre si mesma cobrando uma reforma de pensamento ou
mudança de paradigma em nível pessoal e coletivo.
Victor Frankl
Para
Frankl, o vazio existencial costuma se apresentar no tédio que algumas pessoas
sentem, quando identificam a falta de conteúdo de suas vidas a partir de
momentos de quebra de rotina que acabam, de algum modo, por ensejar que reflitam
a respeito. O vazio existencial, nessa linha de raciocínio, também está na base
da depressão. Há casos em que o indivíduo procura compensar a vontade de
sentido frustrada no poder ou no prazer e, naturalmente, na ausência desses uma
crise se instala convocando-o a repensar a existência e pode facilitar a busca
por terapia especializada. Aí estaria uma contribuição da Logoterapia: convidar
o indivíduo a ser responsável pela sua vida, dito de outra forma, a ser sujeito
da própria história.
Estratégias
para a superação da tristeza
Pôr-do-sol no Cassino - VLL
Algumas estratégias para que
a alma supere a tristeza comum, a partir da reflexão proposta pelo Espírito
François de Genéve, podem ser resumidas da seguinte forma: a) resistência
enérgica às impressões que nos enfraquecem a vontade; b) considerando os
ensinamentos dos Espíritos Superiores registrados por Kardec, aguardar com
paciência o retorno para a vida espiritual que um dia virá, inevitavelmente; c)
ter em vista a nossa missão na presente reencarnação, seja na família ou
cumprindo as diversas obrigações que Deus nos confiou; d) Força, coragem para
suportar àquelas impressões, encarando-as com determinação. Frente ao exposto,
façamos uma breve meditação em torno dessas recomendações logo abaixo:
Quando
a tristeza comum ou melancolia se achegar podemos tentar resistir, como propõe
o benfeitor espiritual, com energia, ou seja, com uma disposição da alma de não
se entregar a esse quadro emocional até porque temos razões de compreender, a
luz do pensamento espírita, o significado do momento presente como aprendizagem
para o ser imortal que somos. A vontade, que é uma das potencias da alma, deve
estar fortalecida pela energia que empreendemos em seu favor para que, com
objetivo esclarecido, modifiquemos a paisagem que se delineia em nós mesmos.
Aqui um recurso útil seria a prática da meditação[10].
Ao
considerar a brevidade da reencarnação e a certeza de nossa ancianidade e
imortalidade, as agruras dessa vida são quase um nada porque observadas de um
ponto de vista mais amplo podem ser compreendidas como acidentes de percurso
que carregam consigo lições ao aprendiz atento que procura aproveitar de cada
experiência aquilo que pode lhe enriquecer a alma. Esses saberes, quando
devidamente apropriados, promovem a paciência que, a seu modo, conduz paulatinamente
à paz interior. E é de gente apaziguada com força interior suficiente para
pacificar que o nosso mundo precisa.
Ainda cabe considerar que, nessa
reencarnação, temos uma variedade de deveres para conosco e para com o próximo
a começar pelo nosso lar e extensivo à sociedade. Tenhamos em mente, quando a
tristeza quiser se aprofundar e inspirar patologicamente algum desejo de morte,
que Deus concede “A cada um a sua missão, a cada um o seu trabalho.”[11]
Assim sendo, conhecendo-nos traçamos objetivos em sintonia com o que somos e a
forma pela qual podemos contribuir com o progresso coletivo, fazendo-nos
agentes transformadores da realidade a começar pelo nosso mundo íntimo.
Por fim, ante as investidas
sombrias do pessimismo e da tristeza recordemo-nos da lição do farol, ainda que
as noites sejam de tormenta, mantém-se impoluto diante da violência das vagas
suportando-as sem tombar e iluminando a jornada dos que prosseguem no mar. O
farol assinala um porto-seguro. A pessoa que procura lidar com a tristeza sem
deixar dominar-se demoradamente por ela – senti-la é normal e saudável – pode
acender luz nesses dias de transição e ausência aparente de referenciais
apaziguadores. Ela pode iluminar caminhos, sem que tenha essa pretensão, pela
luz que acende em sua alma projetando-se corajosamente em um processo de
evolução consciente nas lutas da vida.
[1] Educador, pesquisador e editor do blog SABERES DO
ESPÍRITO.
[2] O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. V, item 25.
[3] O Livro dos Espíritos, questão 921.
[4] SINOTI, Iris. Depressão: uma luz na escuridão. In:
Núcleo de Estudos Psicológicos Joanna de Ângelis. Refletindo a alma: a psicologia espírita de Joanna de Ângelis.
Salvador, BA: Livraria Espírita Alvorada Editora, 2011, p. 291-317.
[5] MAY, Rollo. O
homem a procura de si mesmo. 36. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 23.
[6]
Sobre esse tema vide o meu artigo “Apreciações
sobre a normose” em: http://saberesdoespirito.blogspot.com.br/2010/03/apreciacoes-sobre-normose.html.
[7] O Self deve ser compreendido como um arquétipo do
potencial humano em sua plenitude e tem a função de ordenar a vida psicológica
do indivíduo. Roberto (2004, p. 52) assim o define: “sentido orientador
fundamental, fonte criadora e reguladora de nossa vida psíquica, centro
ordenador e unificador da psique. (Vide: ROBERTO, Gelson Luis. Aquém e além do tempo: uma visão
psicológica e espírita das etapas da vida. Editora Letras de Luz, 2004.)
[8]
O Livro dos Espíritos, questão 919.
[9] FRANKL, Viktor E..
Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 25. Ed. São
Leopoldo: Sinodal, Petrópolis: Vozes, 2008, p. 131-134.
[10] Caso o leitor queira refletir um pouco mais sobre o
tema da meditação, numa perspectiva espírita, sugiro o texto “Medite sempre”,
acessível em: http://saberesdoespirito.blogspot.com.br/2012/02/medite-sempre.html
[11]
O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. I, item
10.