quarta-feira, 22 de junho de 2011

Um espelho chamado inimigo


É inegável o nosso dever, enquanto seres em evolução, de trabalharmos pelo próprio aperfeiçoamento. Forçoso é, para tanto, que busquemos constantemente o conhecimento de nós mesmos para, detectando objetivos já alcançados e esforços ainda necessários, logremos desenvolver nossa individualidade e adquirir maturidade. Santo Agostinho(1) , ciente das dificuldades deste processo, aconselhou uma maneira eficaz de fazermos tal exercício: a noite passar revista ao que fizemos durante o dia, interrogando nossa consciência a respeito de cada ação, dos objetivos que a motivaram e como a qualificaríamos se fosse praticada por outra pessoa. E acrescenta: “procurai também saber o que dela pensam os vossos semelhantes, e não desprezeis a opinião dos vossos inimigos, porquanto esses nenhum interesse têm em mascarar a verdade e Deus muitas vezes os coloca ao vosso lado como um espelho, a fim de que sejais advertidos com mais franqueza do que faria um amigo” (grifos nossos).

Segundo o conselho de Santo Agostinho, ao revisar na memória as nossas ações do dia, observamos o que nos ocorreu como se estivéssemos vendo uma imagem refletida, podendo assim ver outros aspectos das situações que, quando vivenciadas, não foram captadas por nossa percepção. Detectamos alguns automatismos, hábitos repetidos sem intenção, atitudes que não gostaríamos de manter, e essa observação nos permite estar mais conscientes e em alerta para, no dia seguinte, tentar modificar ou não repetir. Por essa razão, as pessoas que conosco convivem podem ser consideradas espelhos na medida em que nos enxergam deste lugar exterior.

O espelho é, na realidade, um objeto cuja importância nos passa despercebida, possivelmente por ser tão corriqueiro. Quando bebês é a imagem do nosso corpo refletida no espelho que nos auxilia a construir nossa imagem corporal, ou seja, a percepção que temos das partes de nosso corpo e de nós próprios enquanto uma unidade. Tínhamos, até então, a percepção de um corpo desorganizado e, dentre outros eventos importantes, as diversas explorações deste corpo em frente ao espelho são decisivos na constituição do nosso “EU”. Mais adiante, o espelho nos auxilia a ver partes do nosso corpo que não são acessíveis aos nossos olhos, como as costas, o rosto, e detectar pequenos detalhes que nos permitem sairmos de casa de uma maneira apresentável ao olhar dos outros.

Como citado por Santo Agostinho, os inimigos podem ser espelhos que Deus nos oportuniza. Nesta reflexão, não trataremos daqueles inimigos que julgamos ter nos trazido prejuízos ou mágoas, pois seria assunto para outras longas páginas. Trataremos daqueles “inimigos” que encontramos em nossos companheiros de rotina, aqueles que nos contrariam, colegas de trabalho e até mesmo familiares com os quais possamos estar em pé-de-guerra. Esses inimigos geralmente não embelezam suas críticas quando nos acusam, visto que, se nosso afeto não lhes é caro, não sofrem pelo medo de perdê-lo. Se pudéssemos utilizá-los como espelhos, poderíamos identificar nossas falhas - primeiro passo para repará-las - fazendo uma análise do que é e o que não é real em suas acusações.

Há também aqueles “inimigos” com os quais não simpatizamos, muitas vezes sem saber por que razão. Se buscarmos avaliar essa antipatia de maneira aprofundada poderemos encontrar diversas razões como, por exemplo, que no fundo desejaríamos ter alguma coisa ou característica que essa pessoa possui. A inveja, ainda que camuflada, gera uma certa implicância e muitas vezes não assumimos, sequer para nós mesmos, as nossas reais motivações. Por outro lado, podemos nos incomodar por encontrar nos outros características que temos, e que de alguma maneira gostaríamos de ter com exclusividade. Outras vezes, implicamos com aspectos de alguém que também encontramos em nós e não gostamos, cobrando de alguma forma que o outro consiga realizar o que ainda não somos capazes. Desses pequenos detalhes, quando não somos seguros de nós e o egoísmo não nos permite reconhecer o direito dos outros de também prosperarem e serem felizes, é que surgem as diversas disputas e cobranças que acabam por abalar as mais ternas afeições.

As reclamações das pessoas com quem convivemos dirigidas a nós devem sempre servir de alerta. Mais do que mostrar algumas das nossas imperfeições, elas nos avisam que muitas das nossas ações e posicionamentos ferem e desrespeitam o nosso próximo, quando muito são apenas formas de nos pedir atenção, carinho, que estejamos mais próximos, ou que devemos dar-lhe mais espaço.

É conveniente observar que olhar-se pouco ou em damasia no espelho são atitudes que não trazem boas consequências. Na primeira situação, tornamo-nos desleixados com nossa aparência e, na segunda, acabamos dando importância exagerada a ela. Ao olhar para os diferentes espelhos da nossa vida, o melhor posicionamento é o equilíbrio, principalmente frente às críticas que recebemos dos nossos espelhos-inimigos: podemos ouvir aquilo que dizem a nosso respeito, tendo o cuidado de não tomar essa visão como verdade absoluta. Tanto por ser a imagem do espelho uma imagem virtual e não real, passível de análises e retoques, como pelo perigo de, na tentativa de agradar a gregos e troianos, tropeçarmos no caminho de nossa conquista evolutiva.



Carina Streda - Santo Ângelo/RS
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[1] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Questão 919. Rio de Janeiro: FEB, 2003.