segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Campos de ação da mente alerta



“É a consciência de si mesmo que constitui o principal atributo do Espírito.” (1)


O monge zen-budista e pacifista Thich Nhat Hanh(2) recorda, num de seus livros, um diálogo de Buda com um interlocutor que lhe indagou sobre o que ele e seus discípulos faziam, talvez esperando saber se realizavam algo fora do normal.

Buda teria respondido o seguinte: “Nós nos sentamos, nós andamos, nós comemos.” Ao que o inquiridor redargüiu em seguida, um tanto desapontado: “Mas senhor, qualquer um senta, anda e come.”

E o ex-príncipe Sidartta fecha o diálogo com um ensinamento: “Quando sentamos, sabemos que estamos sentados. Quando andamos, sabemos que estamos andando. Quando comemos, sabemos que estamos comendo.”

Essa passagem demonstra o significado da mente alerta, ou seja, trata-se de um estado de espírito em que temos consciência plena do que estamos fazendo no momento atual.

Em função das correrias da vida moderna, muitas das nossas atividades rotineiras são realizadas por automatismos, estamos tão ocupados em ganhar dinheiro que é de se perguntar se estamos realmente vivendo.

Acordamos pela manhã, fazemos a higiene, vestimo-nos, alimentamo-nos e saímos. Muitas vezes sequer sentimos o prazer de despreguiçar, a água do banho correr por nosso corpo, o cheirinho da roupa limpa que vestimos ou o sabor do que comemos no café da manhã. Daí muita gente nem lembrar do que comeu ou vestiu ontem. Agimos como autômatos.

E nas relações pessoais? Não raramente falamos alguns monossílabos, estamos sempre com pressa, mas não sentimos a presença do outro ao nosso lado. Desatentos, ouvimos sua fala sem absorver o significado, sentimentos expressos, o estado de espírito de quem nos dirige a palavra.

Nos percursos de automóvel, ou a pé mesmo, tememos assaltos, atrasos ou imprevistos e, por isso, poucas vezes, observamos os painéis humanos e naturais à nossa volta. O vento a acariciar nosso cabelo, o calor vivificante ou o friozinho que nos pede certa quietude.

Produzimos, geramos bens, recursos e consumimos sem “saborearmos” a vida e as suas bênçãos. Vemo-nos como uma peça desplugada do universo, da Natureza e das pessoas. Esquecemos de viver e compartilhar a vida com os que nos cercam através de diálogos e vivências criativas e enriquecedoras.

Praticar a mente alerta consiste numa atitude de acordar a alma para o aqui e o agora tendo sempre em pauta o momento atual como o mais maravilhoso e a presença do outro como uma jóia divina. É viver sabendo que se está vivo.

Focada num objeto de análise - sem julgamento, culpa ou discriminação - a mente alerta permite ao indivíduo perceber atentamente o estado geral da sua mente e do seu coração, ou seja, que formações mentais habitam seus pensamentos, quais sentimentos vêm sendo nutridos diariamente ou emoções às quais está habituando.

Da mesma forma, a prática da mente alerta dá ensejo à identificação dos conteúdos que formam a natureza moral do sujeito, muitas vezes materializados em atitudes, além de escutar os fenômenos que o corpo experimenta neste exato instante.

Ao observar a natureza das idéias que fazem a sua cabeça, aquele que pratica a mente alerta é capaz de discernir a respeito de quais vale a pena cultivar, tendo em vista a sua essência espiritual e o seu propósito, afastando do “jardim” da mente o que for de conteúdo negativo.

Quando são rastreados sentimentos venenosos como a raiva, o ciúme, a inveja ou apego, o Espírito deve reconhecê-los, não se dando ao luxo de enganar-se, procurando estabelecer caminhos possíveis de sua superação para, através dos recursos ao seu alcance, vivenciar sentimentos saudáveis curando-se aos poucos das imperfeições.

Olhando vigilante as emoções que se manifestam n'alma, o ser é capaz de gerenciá-las sem se deixar dominar por emoções destrutivas, procurando orientar as energias para a criação de um estado mental de serenidade e contentamento.

Na hora em que a mente alerta cuida do corpo, a racionalidade escapa à oposição mente-corpo para entender essa relação de maneira complementar, não dicotômica. A saúde do corpo depende da saúde do Espírito e as agressões ao corpo marcam, variando ao infinito, a mente em sua complexidade.

O corpo é um templo sagrado portador de elementos cuja identidade se mistura com a do cosmos. Emprestado pelo Grande Arquiteto do Universo, merece nosso cuidado e preservação equilibrada. A mente alerta não quer descaso nem culto ao corpo, somente pede cuidado com ele como com a alma.

O cultivo da mente alerta leva ao despertar da consciência do Espírito que passa a reconhecer o estágio impermanente das coisas e a sua própria transcendência em relação ao ciclo nascimento-morte.

Plenamente atento ao que se passa no planeta interno, o Espírito pode fazer escolhas mais acertadas, condizentes com o desejo de fazer o bem a todos os seres.

A mente atenta o conduz à reverência à vida em todas as suas formas de manifestação, afastando o sujeito do ímpeto de destruição que tem demarcado a conduta de uma coletividade regida pelo utilitarismo, o qual vê o ambiente natural como uma arca de tesouros infindáveis consumindo-a irresponsavelmente.

Ao conscientizá-lo das dores do mundo, causadas pela violência, o estado de mente alerta convida o indivíduo à promoção da paz interior como forma possível de engajamento num movimento em prol da paz no Planeta.

Diante da presença do outro, aquele que se esforça em alertar a sua mente, abre-se ao diálogo que lhe ensina uma escuta compassiva e profunda que deverá ser sempre seguida de uma fala verdadeiramente amorosa.

Da manifestação do amor, que a mente alerta suscita, nasce a responsabilidade afetiva que não usa o outro ao seu bel prazer, mas zela pela sua felicidade.

Esse amor se desdobra no amor a si, aos demais seres da vida, à Terra-mãe e leva o Espírito, hospedado temporariamente nessas paragens, a consumir com discernimento e a viver com simplicidade, libertando-o das ilusões do consumismo que inventa necessidades artificiais.

Viver com a mente alerta consiste, enfim, no exercício de estar consciente em cada momento. Atento ao estado geral da mente e do coração como sujeito das circunstâncias e emoções, jamais como mero objeto.

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[1] O Livro dos Espíritos, questão 600
 
[2]NHAT HANH, Thich. Meditação andando: guia para a paz interior. Vozes: Petrópolis, RJ, 2005, p. 10..