terça-feira, 15 de outubro de 2013

Reflexos das Lições de Allan Kardec - Deolindo Amorim






Há mais de 20 anos, aproximadamente, fizemos uma palestra sobre o aniversário de Allan Kardec, em determinada cidade, e dissemos, sobre a vida do Codificador do Espiritismo, o que teria dito qualquer expositor naquela circunstância, isto é, aquilo que já se conhece, com base nos dados biográficos. Claro que aduzimos alguns comentários, resumidamente, neste ou naquele ponto. Dias depois, em conversa com o presidente do Centro, um dos assistentes lhe fez ver, sem nenhum intuito depreciativo, que a palestra não trouxera “nenhuma novidade”. Evidentemente, não. Que novidade poderíamos levar, se o tema do dia era exatamente a vida de Allan Kardec? E onde colher elementos sobre a vida de Allan Kardec, senão na bibliografia já conhecida e divulgada?...

Segundo uma regra de honestidade intelectual, aliás, muito antiga, em matéria histórica não se pode inventar, principalmente quando se trata da vida de um homem de outra época; se não é lícito inventar, porque é uma distorção da verdadeira crítica histórica, muito menos seria correto, por exemplo, fazer divagações desnecessárias ou inconsistentes apenas para dar a impressão de “coisa nova". Não. Atenhamo-nos às fontes autorizadas, respeitemos os fatos, e estaremos bem, pelo menos com a nossa consciência. Mas uma coisa — estejamos certos — é a vida de Allan Kardec propriamente dita, o homem, enfim, com as suas lutas e a sua grandiosa missão, e outra coisa são as lições de sua vida, aplicadas à realidade atual.

Há sempre uma reflexão nova no curso de nossas experiências, envolvidas cada vez mais na “engrenagem” de uma sociedade complexa, exigente e absorvente. Aí, sim, as lições de Kardec se nos afiguram novas, novíssimas, desde que saibamos descobrir o momento e o lugar certo das aplicações à vida cotidiana.

Uma de suas lições, ainda hoje com todo o “sabor de atualidade”, é uma referência de 1854, justamente quando começou ele a dar os primeiros passos no campo mediúnico, como bem o declara em “Obras Póstumas”. No entanto, decorrido um período de 126 anos, quando poderíamos dizer que tudo já ficou no passado, o certo é que o procedimento de Allan Kardec ainda se aplica à realidade dos dias presentes com toda a justeza. Disse ele: “Conduzi-me com os Espíritos, como houvera feito com os homens.”

Embora tratando as entidades comunicantes com o devido respeito e a necessária humildade, para ele os Espíritos não tinham prerrogativas de reveladores predestinados. E não é, porventura, um critério sensato, ainda válido em nossos dias? A experiência demonstra que sim. É uma lição que perdura no tempo e no espaço. Não precisamos santificar os Espíritos nem muito menos colocar o médium no pedestal da idolatria para que possamos receber comunicações proveitosas. Desde que nos mantenhamos com dignidade, não exterior ou formal, mas interior, com elevação de pensamentos; desde que tenhamos propósitos justos; desde que façamos por merecer, enfim, o mundo espiritual saberá avaliar as nossas reais necessidades no momento exato.

O simples ambiente de uma reunião espírita bem orientada, preparada com recolhimento e uma prece sincera, já é um campo propício à projeção de influências salutares, ainda que não haja manifestação ostensiva deste ou daquele Espírito. Muito se pode fazer e obter, portanto, sem ser necessário chegar ao deslumbramento. Neste particular, como se vê, Allan Kardec procedeu de uma forma que nos permite aplicar o seu critério, ainda hoje, a diversas situações no trabalho mediúnico. Mas devemos vê-lo por outros prismas.

Se alguém disser que Allan Kardec pensou, há mais de um século, na aliança da competência com a moralidade como estágio evolutivo capaz de firmar o equilíbrio social, certamente não estará dizendo ou revelando novidade, pois o tema está muito bem explanado em “Obras Póstumas”. E o ponto central de suas ideias, neste assunto, se resume no entendimento de uma “aristocracia intelecto-moral”.

A ideia em si não seria novidade, porém a conjuntura em que nos encontramos atualmente nos leva a esta pergunta: será possível, ou seria possível ajustar, hoje em dia, o pensamento de Allan Kardec à situação do nosso mundo? A ideia é muito antiga, e ninguém iria apresentá-la como inédita, mas estamos diante de fatos novos. E quais são esses fatos?

Em primeiro lugar, as condições de vida, de um modo geral, são muito diferentes, sensivelmente diferentes das condições em que viveu Allan Kardec. Em segundo lugar, a ideia de aristocracia, no mundo de hoje, o mundo da interação, mundo de dependência e competição, jamais poderia ter o sentido de outrora. É uma palavra que muitas vezes causa arrepio!... Em terceiro lugar, o próprio conceito de moralidade, como estamos vendo a cada passo, vem sofrendo restrições muito graves.

Afinal, que estaria imaginando ou desejando Allan Kardec ao preconizar o advento (não se sabe quando) de uma aristocracia intelecto-moral? Claro que ele tomou a palavra aristocracia no sentido original, pois bem conhecia a raiz do vocábulo; “o poder dos melhores”. Então, seria uma sociedade em que o poder fosse confiado aos melhorescidadãos, mas é preciso entender melhores em moralidade, melhores por serem mais dignos, mais corretos, não pelo sangue nem pela linhagem nobre, como se observava na antiguidade.

Hoje, porém, naturalmente por força da semântica, aristocracia é o oposto a democracia, porque tomou um sentido acentuadamente discriminatório. “Aristocrata", hoje, é o indivíduo que se coloca acima dos outros, não se confunde, não se “mistura” com a massa. É um conceito que está perdendo sentido cada vez mais. Fala-se em aristocracia social, aristocracia intelectual etc.

Recorramos de novo ao pensamento de Allan Kardec. Ponhamos, antes, uma questão: pelo fato de estarmos reconhecendo, forçosamente, que tanto o conceito de aristocracia, quanto o conceito de moralidade no mundo atual não coincidem inteiramente com o sentido que tinham esses conceitos no tempo de Allan Kardec, seria cabível dizer que suas palavras se perderam no vazio por falta de adequação aos fatos novos?

Existem colocações novas em relação ao conceito de moralidade, mas a ideia de Allan Kardec não perdeu a consistência no curso da História, embora se diga, às vezes, que estamos muito longe de uma “aristocracia intelecto-moral”, uma vez que os mais espertos, ainda que não sejam capazes, quase sempre passam à frente dos mais dignos e competentes. Neste caso, Allan Kardec seria simplesmente um visionário, por ter lançado uma ideia irrealizável. Não. A despeito das mudanças que se operaram no mundo, a bem dizer em todos os sentidos, o valor intelectual e o valor moral se reclamam e se completam, pouco importa que muita gente não se preocupe com problemas desta ordem.

Se o indivíduo tem muita capacidade, mas não se recomenda moralmente, será um condutor desastroso, seja no âmbito da coisa pública, seja no âmbito da economia privada; se é realmente honesto, um modelo de moral, mas inexperiente ou inábil, também não está em condições de assumir certas responsabilidades.

Em suma, sem a identificação, a verdadeira harmonia da moralidade com a capacidade nunca será possível uma gerência produtiva, sólida e benéfica. É o pensamento de Allan Kardec. E os valores por ele preconizados estão de pé, apesar das novas concepções de vida e dos novos estilos hoje predominantes neste ou naquele segmento da sociedade.

Tentamos, assim, apresentar Allan Kardec pelo prisma de uma visão social guiada pela compreensão de valores insubstituíveis, sejam quais forem as transformações sociais e as alterações semânticas. Tocamos apenas no assunto, sumariamente.

Vamos procurá-lo, agora, por outro prisma, do qual nos ficaram possivelmente as suas maiores lições: o desinteresse pessoal, a humildade natural e franca com que ele fez questão de declarar que a obra não é de sua autoria, é dos Espíritos. Claro que a Codificação da Doutrina teria de trazer o nome de Allan Kardec. Mas o ensino original, o ensino nuclear, o ensino puro, a gama que deu a base da Doutrina é realmente do Alto. Não querendo, portanto, intitular-se criador de um pensamento renovador nem muito menos autor pessoal de uma ordem de ideias tão luminosas, ideias que viriam abrir o horizonte humano para as mais sérias e mais profundas questões da humanidade, declarou logo cedo, na própria Introdução de “O Livro dos Espíritos”: “A verdadeira Doutrina Espírita está no ensino que os Espíritos deram, e os conhecimentos que esse ensino comporta são por demais profundos e extensos para serem adquiridos de qualquer modo, que não por um estudo perseverante, feito no silêncio e no recolhimento.”

Com referência explícita a “O Livro dos Espíritos”, disse ele tranquilamente: “O mérito que apresenta cabe todo aos Espíritos que a ditaram” . (O grifo é nosso.) Teve, ele, grande participação pessoal no diálogo que estabeleceu com os Espíritos instrutores, como também nos comentários de ordem pessoal, assim como na elaboração das outras obras, como sabem os espíritas; mas o aspecto relevante, que é uma lição permanente, é a franqueza com que indicou prontamente a autoria espiritual, deixando de lado o seu nome.

Somente os homens de vocação missionária têm desprendimento para tanto. E, como missionário, acreditou em suas ideias, sempre orientado pelos mentores espirituais. E essas ideias devem influir, e já estão influindo na transformação do mundo, ainda que não produzam efeitos maravilhosos ou impressionantes.

Não estamos esperando, finalmente, que as ideias espíritas modifiquem o mundo por inteiro, como se fosse possível mudar os rumos da vida por um passe de mágica, mas estamos certos, por experiência já vivida, de que nas áreas onde penetra a luz do ensino espírita, a maneira de ver as coisas já é diferente.

Os jovens que têm formação espírita, por exemplo, formação adquirida nas Mocidades e Juventudes, atualmente numerosas no Brasil, quando realmente conservam as sementes recebidas, vão para a Universidade ou ingressam depois na vida pública com um lastro de princípios orientadores. Já sabem, por isso, que a paz duradoura, a paz profunda, inspirada na mensagem do Cristo, mensagem que está fora e acima de quaisquer configurações geográficas, políticas, religiosas ou culturais, porque o amor é universal; já sabem os que receberam formação espírita — repetimos — que a verdadeira paz não se constrói por meio de fórmulas e atos solenes, mas na consciência do próprio ser humano, apoiada no poder da inteligência e na força do sentimento. Tudo isto, em suma, são reflexos das lições de Allan Kardec.

Fonte: Reformador, outubro de 1980, Rio de Janeiro-RJ. Revista de divulgação da Federação Espírita Brasileira.

Deolindo Amorim nasceu em Baixa Grande-BA, em 23 de janeiro de 1906 e desencarnou no Rio de Janeiro-RJ, em 24 de abril de 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas do Brasil. Jornalista, sociólogo, escritor espírita de estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do Espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano.
Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras.