É interessante observar a conexão entre os saberes organizados em O Livros dos Espíritos e as demais obras da Codificação, há entre eles uma inter-relação, ou seja, todos os pontos se correlacionam numa harmonia de conjunto e são filosoficamente interdependentes, uns desaguam nos outros de tal forma que a inteligibilidade acerca de determinado aspecto pede a igual compreensão de outros mais.
Como uma tapeçaria – trata-se de uma metáfora - composta pelo entrelaçamento de seus fios, se nos apresenta o Espiritismo. Seus princípios e conceitos estão conectados, entrecruzam-se formando o todo doutrinário, num fluxo contínuo de informações tecidas dialogicamente entre si.
Emerge a necessidade de serem desdobrados os temas abordados na primeira obra e assim, passam a figurar no painel da Doutrina Espírita, as demais obras da Codificação, tais como: O Livro dos Médiuns, O Evangelho segundo o Espiritismo, A Gênese e O Céu e o Inferno.
Trata-se da execução, no plano terrestre, de um projeto estruturado anteriormente no mundo dos Espíritos por uma equipe vasta de colaboradores, da qual Kardec era um de seus diletos membros, liderados pelo Espírito Verdade. Trata-se da concretização do Consolador anunciado outrora pelo Mestre Nazareno, cujo início pode ser demarcado em 18 de abril de 1857, com a publicação de O Livro dos Espíritos.
Alguns aspectos do conteúdo de O Livro dos Espíritos
Contendo a ciência do infinito, essa obra nos apresenta um estudo, no seu Livro Primeiro, das Causas Primárias – Deus, os elementos gerais do universo, a Criação universal e o princípio vital - contemplando um entendimento sobre intrincadas questões que o dogmatismo religioso não dava conta de esclarecer ante as exigências do emergente culto à racionalidade do século XIX, herdeiro do iluminismo francês.
Vale destacar, por exemplo, a concepção espírita de Deus, da Inteligência Suprema num caráter não-antropomórfico, como a Causa Primeira de todas as coisas. Porém, os Espíritos vão deixar claro nossos limites intelectuais para entender a natureza íntima de Deus.
Certamente, esse apontamento não faz parte da tradição das religiões que comumente apresentam como “mistério da fé” aquilo que a racionalidade humana é incapaz de abarcar dado o seu insipiente desenvolvimento. Os Espíritos Superiores afirmam várias vezes a Allan Kardec que nem mesmo eles conhecem, em profundidade, natureza de Deus, da qual somente podem nos dar uma pálida idéia frente ao reconhecimento sábio da própria ignorância, de seu compromisso com a verdade e, sobretudo, em função de nossos parcos recursos intelectuais.
Somente entenderemos Deus quando estivermos mais desmaterializados e, mediante o nosso aperfeiçoamento, Dele estivermos mais próximos, tal como se pode entender da questão 11 de O Livro dos Espíritos.
Quando Kardec perscruta esses saberes, os Guias da humanidade advertem: “(...) Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos desembaraçardes delas, o que vos será mais útil o que quererdes penetrar o que é impenetrável.”[1] Mas, das elucidações dos Espíritos, o nobre mestre delineou os atributos da Divindade, um conjunto de qualidades que aproximam as nossas conjecturas de um entendimento possível em referência ao Pai Celeste.
No Livro Segundo da obra fundamental do Espiritismo, a temática que passa a ser estudada é o Mundo Espírita. Nela os Espíritos abordam a questão da nossa natureza espiritual e origem – sendo os meandros dessa última um mistério[2] até mesmo para os Espíritos Superiores.
No Mundo Espírita encontramos também a escala espírita, que deveria receber maior atenção dos adeptos do Espiritismo, aliás, como toda a obra do Codificador para que se possa ter um entendimento mais coerente e fiel sobre o seu conteúdo doutrinário.
A escala espírita, consistindo numa classificação, não absoluta, das diferentes ordens de Espíritos, leia-se categorias evolutivas de todos nós, em conformidade com as nossas aquisições intelectuais e morais, é uma ferramenta excelente para todos que lidam com a questão da mediunidade.
Kardec considerou a escala espírita como a chave da ciência espírita[3], como um quadro capaz de ajudar a determinar a ordem ou o grau de elevação ou inferioridade dos Espíritos com os quais venhamos a travar contato, permitindo-nos alinhavar, por conseqüência, o grau de confiança de que são merecedores ou não.
Além de tratar de temas como a desencarnação, a realidade da vida espiritual e os fenômenos de emancipação da alma, as ações interventoras dos Espíritos no mundo corpóreo, suas ocupações e os reinos da Natureza, o Livro Segundo dá a devida atenção ao dogma filosófico da reencarnação.
A reencarnação é um verdade universal que vai ganhar essa terminologia com Allan Kardec, no recolhimento de variadas comunicações espíritas que vão delinear esse princípio. Ela rasga o paradigma da unicidade da existência, postulado pela teologia tradicional, revigorando a lei dos renascimentos, ensinada no seio de algumas tradições espirituais antigas e apresentado por Jesus Cristo naquele célebre diálogo entre o Mestre e o doutor da lei chamado Nicodemos.
Aprendemos que precisamos renascer para evoluir, somente o retorno à conexão com a carne nos permite galgar progressivamente a escala evolutiva rumo à perfeição relativa que somos vocacionados a atingir.
Em seu Livro Terceiro, encontramos as leis morais, mais tarde atendidas em O Evangelho segundo o Espiritismo cujo foco de atenção é a essência moral dos ensinos de Jesus. Na leitura atenta e sem preconceito do iluminado conteúdo dessa terceira parte, apreende-se a perfeita convergência entre o Cristianismo do Cristo – em contraposição ao que dele fizeram os homens – com toda a moral lecionada pelos Espíritos Superiores.
Aqui vale ressaltar, entre outras tantas passagens dignas de relevo, a questão do homem de bem. Fica claro que a categoria “homem de bem” se trata da meta comportamental que deve ser perseguida por todos aqueles que abraçam o Espiritismo como filosofia de vida, buscando num exercício perseverante de auto-aperfeiçoamento, a vivência da lei de justiça, amor e caridade em toda a sua amplitude.
Por fim, no Quarto Livro, podemos verificar que tem atenção o sofrimento e a felicidade nas paragens terrestres e na vida futura, concedendo-nos a compreensão de que somos todos artífices da nossa felicidade nas duas dimensões da vida, que ninguém escapa à lei de retorno, sendo necessário o reencontro educativo da consciência culpada com as conseqüências de suas ações antiéticas, da mesma forma que, aquele que trilha um caminho justo e nobre, recolhe no calhau das experiências, os felizes resultados de suas ações.
A conclusão de O Livro dos Espíritos, perfeitamente sincronizada com as demais partes da obra, não deixa a desejar e aborda, inclusive, três efeitos gerais da compreensão do Espiritismo Filosófico[4], sendo esses: o desenvolvimento do sentimento religioso; a resignação ante as vicissitudes da vida e a indulgência para com as imperfeições alheias.
(artigo publicado na íntegra na Revista Reencarnação -FERGS - de nº 433, com o título "O Livro dos Espíritos e a Codificação)
[1]KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Especial. ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2007, questão 14.
[2]KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Especial. ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2007, questão 78.
[3]KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Especial. ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2007, questão 100.
[4]KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Especial. ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2007, p. 635.