quinta-feira, 2 de abril de 2009

Carta do Sr. Alexandre Delanne


Rouvray, 30 de março de 1870.

Senhores e amigos,

Encontro-me no campo há um mês, em busca do restabelecimento de minha saúde, fortemente abalada por seis meses de doença.



Por uma carta da Sra. Delanne, tomei conhecimento de que ireis inaugurar, amanhã, o monumento de nosso venerado mestre Allan Kardec. Eu me sentiria muito feliz se pudesse estar convosco para assistir a essa tocante cerimônia e prestar homenagem, de viva voz, uma vez mais, a esse Espírito de escol que, em me dando a fé esclarecida, deu-me, ao mesmo tempo, a calma e a resignação tão necessárias nesta Terra de provações.



Mas, se a distância e o esgotamento de minhas forças não me permitem acompanhar-vos pessoalmente, crede que meu coração, malgrado a impotência do meu corpo, permanece livre e se unirá aos vossos.



Ninguém saberia, melhor do que eu, reconhecer as raras qualidades de Allan Kardec e render-lhe justiça.



Muitas vezes, em minhas longas viagens, vi o quanto era ele amado, estimado e compreendido por todos os adeptos. Todos desejavam conhecê-Io pessoalmente a fim de lhe agradecerem por ele lhes ter dado a luz através de suas obras e lhe testemunharem sua gratidão e seu inteiro devotamento. Eles ainda o amam, até hoje, como a um verdadeiro pai. Todos lhe proclamam o gênio e o reconhecem como o mais profundo dos filósofos modernos. Contudo, estarão em condições de o apreciar em sua vida privada, isto é, em suas ações?



Puderam avaliar a bondade de seu coração, seu caráter tão firme quanto justo, a benevolência de que usava em suas relações, a caridade efetiva que inundava sua alma, sua prudência e sua extrema delicadeza? - Não!



Muito bem! É deste ponto de vista, senhores, que hoje vos quero falar do autor de O Livro dos Espíritos, já que por muitas vezes tive a honra de ser recebido em sua intimidade. Como testemunhei algumas de suas boas ações, creio não ser descabido fazer algumas citações aqui.
Um amigo meu de Joinville, o Sr. P..., veio ver-me certo dia. Fomos juntos à vila Ségur, a fim de visitar o mestre. No decorrer da conversa, o Sr. P... narrou a vida de privações por que passava um compatriota seu, já avançado em idade e a quem tudo faltava, inclusive agasalhos para se cobrir no inverno, e obrigado a proteger os pés desnudos em toscos tamancos. Esse homem de bem, entretanto, longe estava de se lastimar e, sobretudo, de pedir auxílio: era um pobre envergonhado.



É que uma brochura espírita lhe caíra sob os olhos, permitindo-lhe haurir na Doutrina a resignação para as suas provas e a esperança de um futuro melhor.



Vi, então, rolar uma lágrima compassiva dos olhos de Allan Kardec e, confiando ao meu amigo algumas moedas de ouro, disse-lhe: "Tomai-as para que possais prover às necessidades materiais mais prementes do vosso protegido. E, já que ele é espírita e suas condições não lhe permitem instruir-se tanto quanto ele desejaria, voltai amanhã. Sereis portador de todas as obras de que eu puder dispor, a fim de as entregar a ele". Allan Kardec cumpriu a promessa e hoje o velhinho bendiz o nome do benfeitor que, não satisfeito em socorrer sua miséria, ainda lhe dava o pão da vida, a riqueza da inteligência e da moral. Alguns anos atrás, recomendaram-me uma pessoa reduzida à extrema miséria, expropriada violentamente de sua casa e jogada sem recursos no olho da rua, com a mulher e os filhos. Fiz-me intérprete desses infortunados junto ao mestre. No mesmo instante, sem querer conhecê-Ios, sem mesmo inquirir de suas crenças (eles não eram espíritas), Allan Kardec forneceu-me os meios de os tirar da miséria, o que lhes evitou o suicídio, pois já haviam decidido libertar-se do fardo da vida, tornado pesado demais às suas almas desalentadas, caso tivessem que renunciar à assistência dos homens.



Enfim, permiti que eu narre ainda o seguinte fato, em que a generosidade de Kardec rivaliza com sua delicadeza.



Um espírita, residente num lugarejo situado a vinte léguas de Paris, havia pedido a Allan Kardec que lhe concedesse a honra de uma visita, a fim de que este assistisse às manifestações espíritas que com ele se produziam. Sempre solícito quando se tratava de prestar um obséquio, e atento ao princípio de que o Espiritismo e os espíritas devem assistir os humildes e os pequenos, logo partiu, acompanhado de alguns amigos e da Sra. Allan Kardec, sua estimada companheira.



Não teve por que se arrepender de sua resolução, porquanto as manifestações que testemunhou foram verdadeiramente notáveis. Mas, durante sua curta permanência ali, seu anfitrião foi cruelmente afligido pela perda súbita de uma parte de seus recursos. Consternados, os pobres dissimulavam o seu pesar tanto quanto lhes era possível. Todavia, a notícia do desastre chegou a Allan Kardec e, no momento de partir, tendo-se informado da cifra aproximada do prejuízo, remeteu ao administrador da cidade uma soma mais que suficiente para restabelecer o equilíbrio financeiro da situação do seu hospedeiro. O lavrador só tomou conhecimento da intervenção de seu benfeitor após a partida deste.



Eu não pararia de falar, senhores, se me fosse dado lembrar os milhares de fatos deste gênero, conhecidos tão-somente por aqueles que ele socorreu; porque ele não aliviava apenas a miséria material, mas também levantava, com palavras confortadoras, o moral abatido, e isto sem que sua mão esquerda jamais soubesse o que dava a direita.



Antes de terminar, impossível resistir ao desejo de vos revelar este último fato. Uma tarde, certa pessoa de minhas relações, que passava por cruéis provações, mas que a todos ocultava sua miséria, encontrou na portaria uma carta lacrada, restrita a estas simples palavras: "Da parte dos bons Espíritos", contendo recursos suficientes para ajudá-Ia a sair da crítica situação em que se achava. Do mesmo modo que a bondade do mestre lhe descobrira o infortúnio, meu amigo, guiado por alguns indícios e pela voz do coração, logo reconheceu o seu anônimo benfeitor.



Eis o coração desse filósofo, tão desconhecido durante sua vida! A despeito de tudo, quem mais do que ele, tão bom, tão nobre, tão grande em suas palavras quanto em suas ações, foi mais alvo da injúria e da calúnia? E, contudo, não tinha como inimigos senão os que não o conheciam; porque, quando o apreciavam melhor, mesmo sem partilhar suas opiniões filosóficas, eram forçados a render homenagem à sua boa-fé.



Seus críticos, que dele não conheciam senão a bandeira, tentaram indispô-Io contra a opinião pública, sem averiguar se os boatos que produziam continham o menor fundamento. Mas ele empunhou essa bandeira tão altiva e firmemente que nenhuma mancha foi capaz de atingi-Ia, e a lama com que a queriam encobrir apenas sujou a mão dos panfletários.



Caro mestre, nobre e grande Espírito, paira em tua majestade sobre os que te amam e respeitam! Observa os que te são inteiramente devotados! Continua sobre eles a tua intervenção caridosa e protetora! Transmite às suas almas o fogo sagrado que te anima, a fim de que, profundamente convencidos dos imortais princípios que professaste, possam eles marchar sobre tuas pegadas, imitando tuas virtudes! Faze que reinem entre nós a concórdia, o amor e a paz, a fim de que possamos reunir-nos a ti, quando houver soado para nós a hora da libertação!...

ALEXANDRE DELANNE
Extraído do livro O Espiritismo na sua expressão mais simples e outros opúsculos de Kardec, Ed. FEB.