Vinícius Lima
Lousada[2]
(...)
O Evangelho segundo o espiritismo representou um avanço; o Céu e o Inferno é
um avanço ainda maior cujo alcance será facilmente compreendido, posto
que toca o essencial de certas questões, contudo, não deveria ter
aparecido prematuramente. –
Allan Kardec[3]
Allan
Kardec, pouco a pouco, vai se revelando ao leitor como o pensador maduro,
comprometido com a filosofia que pretende desenvolver a partir das revelações
trazidas pelos Espíritos em sua pesquisa sobre o mundo invisível.
O
observador atento, que se constituiu nesse educador da era nova, pesa com
sobriedade as palavras, administra racionalmente o movimento de ideias ao qual
é guindado como chefe, por pioneirismo científico e acolhimento coletivo. Ele vai
apresentando progressivamente o desdobramento da Doutrina dos Espíritos em um formidável
trabalho interexistencial, sob a orientação do Espírito de Verdade, o Mestre de
todos nós, como um dia se referiu o Espírito Erasto[4].
Na epígrafe em tela, o Allan Kardec
destaca o avanço nas ideias espíritas, corporificado na obra O céu e o Inferno, como até maior do que o ocorrido com a publicação de O evangelho segundo o espiritismo. Mas o
que o levaria a fazer tal afirmativa? Observemos, caro leitor, a epígrafe cujo
texto retiramos do prefácio escrito pelo fundador da Ciência Espírita, ali o
mestre se reporta ao alcance da obra e às questões que o seu conteúdo atingiria.
Esta obra fundamental do Espiritismo
aborda o intrigante tema da vida futura ou do porvir do ser humano que sempre
inquietou a humanidade e encontrou eco nas reflexões propostas por diversos
pensadores que figuraram na História da Filosofia. Muitas foram as ideias e
sistemas erigidos, mas nenhum deles trouxe, antes de Allan Kardec, a sansão dos
fatos observáveis a partir do diálogo investigativo com aqueles que já
ultrapassaram a “fronteira” que separa o mundo corpóreo do mundo espírita ou
dos Espíritos.
O livro toca nos temas que vigoravam
entre os dogmas teológicos e, o seu alcance, poderia ser antevisto na
possibilidade, deduzo, de trazer racionalidade à fé, tendo em vista que, não
sendo o espiritismo uma religião constituída não tinha por propósito converter
ninguém à sua perspectiva e nem fazê-lo a abandonar à própria fé, aliás, dizia
o mestre no diálogo com o padre:
“(...)
o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de questões, até hoje
insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência
e não de uma religião; e a prova disso é que ele conta entre os seus aderentes
homens de todas as crenças, que por esse fato não renunciaram às suas
convicções: católicos fervorosos que não deixam de praticar todos os deveres do
seu culto, quando a Igreja os não repele; protestantes de todas as seitas,
israelitas, muçulmanos e mesmo budistas e bramanistas.[5]
Kardec
estava convencido de que o Espiritismo não era uma religião, aliás, na mesma
obra destaca que quem teve a iniciativa errônea de colocá-lo nesse patamar foi
a igreja dominante à época. Pelo contrário, o Espiritismo, na esteira do
pensamento iluminista, vinha esclarecer questões obscuras no campo da fé
humana, mas não com teorias pré-concebidas ou dogmas religiosos, mas com a
sanção dos fatos espíritas, observados e levados à verificação experimental,
bem como, considerados no desdobramento filosófico de suas consequências
morais.
Em
consonância com o princípio de liberdade de consciência, preconizado pela
Doutrina dos Espíritos, Allan Kardec faz ver que os espíritas poderiam cultivar
a sua fé religiosa no campo da esfera pessoal e adotar por convicção a nova
filosofia. Logo, era normal ter o seu culto particular e ser adepto do
Espiritismo, algo difícil de ser compreendido numa visão que ignorasse o
verdadeiro caráter da Doutrina e a sua intencionalidade filosófica, no sentido
de postar-se como aliança possível entre a ciência e a religião, contribuir com
a unidade de crenças e, por consequência, fomentar a tolerância religiosa.
Além disso, ao invés de disputar
adeptos, no arrojado projeto do Espiritismo estaria o desejo de combater a
incredulidade, fosse pela lógica irretorquível de sua filosofia, fosse pela
apresentação de uma quantidade de fatos observáveis, sobejamente registrados
por Kardec e publicados, especialmente, na Revue.
O
céu e o inferno está disposto em duas partes que compreendem
o estudo da Doutrina e a descrição da condição moral de diversos Espíritos, constituindo-se
em “guia do
viajante antes de entrar em um novo país”, conforme observa Kardec (idem). Esse
livro extraordinário apresenta um profundo estudo filosófico das alternativas
apresentadas para a humanidade no tocante à vida futura, disponibiliza, mais
uma vez, a tese espírita da imortalidade da alma objetificando o seu estado de
felicidade ou infelicidade no mundo dos Espíritos, com base nos relatos dados
pelos próprios mortos, outrora “proibidos” por Moisés e as igrejas de atenderem
o convite à manifestação neste mundo, junto aos seus ou a qualquer outro interessado
na sorte dos que partiram desta materialidade.
A doutrina e os exemplos apresentados na obra derrubam
os dogmas das penas eternas, dissonantes da compreensão de Deus lecionada por
Jesus de Nazaré e incapaz de convencer uma criança em tempos de primado da razão,
como se esperava no século XIX.
[1] Devo destacar ao leitor que
utilizei-me da tradução do primeiro Préface,
publicado por Kardec, feita pelo pesquisador Augusto C. de Araújo, conforme
encontramos em KARDEC, Allan. Préface.
In: ______. Le Ciel et l’Enfer ou la Justice Divine selon le Spiritisme.
Paris : Ledoyen,
Dentu, Fréd. Henri, 1865. p. I-VIII. Tradução: Augusto César Dias de Araujo.
Revisão: Vital Cruvinel. Acessível em: http://acdaraujo.blogspot.com.br/2011/11/o-prefacio-quase-esquecido-da-primeira.html.
Acessado em 19/06/2015.
[2] Educador, pesquisador, editor do
blog www.saberesdoespirito.blogspot.com,
residente em Bento Gonçalves/RS.
[3] KARDEC, Allan. O Céu
e o Inferno. Ou a justiça divina segundo o espiritismo. Prefácio.
In: KARDEC, Allan. Préface. In: ______. Le Ciel et l’Enfer ou la
Justice Divine selon le Spiritisme. Paris
: Ledoyen, Dentu, Fréd. Henri, 1865. p. I-VIII. Tradução: Augusto César Dias de
Araujo. Revisão: Vital Cruvinel. Acessível em: http://acdaraujo.blogspot.com.br/2011/11/o-prefacio-quase-esquecido-da-primeira.html.
Acessado em 19/06/2015.
[4]______. Revista Espírita de novembro de 1861. Reunião geral dos Espíritas
bordeleses - Primeira epístola de Erasto.
[5] KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Diálogo com o
padre.